30 março 2009

Quando eu andava na escola

Quando eu andava na escola... O meu despertar era feito antes de acordar. As minhas mãos não tinham lugar. O meu olhar fazia-se do horizonte da terra e do mar, do homem feito sonho e da mulher doce que me ajeitava nos seus braços e me embalava ao som das ondas desse navegar.
Odiava o rabo de cavalo, detestava a bata no colégio e as sestas obrigatórias a seguir ao almoço. Mas aquela menina tão grande que me espreitava no fundo do corredor, a seguir ao arroz de tomate que nunca esqueci, o sr Tomé que tinha um boné e nos mandava calar no tom seco da proibição de sermos gaivotas e voarmos, os sons frios da sala do piano, azul, o ballet e o tule, a mademoiselle e a directora; passaram na minha vida a toque de caixa que abro agora como se fosse um diario de hoje.
Eramos tão pequenas e, enquanto embrulhavamos um feijão em algodão molhado, eu lembrava as searas e os touros e o baloiço que meu avô pendurara numa azinheira junto à eira. Chorava a falta do sol e dos bolinhos de lama no pátio em frente à casa de onde minha avó gritava por tudo e por nada. As bolinhas de massa que roubava nos dias de fazer pão, a amoreira verde e os dias de festa em que ao longe avistava um carro, duas cabeças ao vento, o mar e a terra e um abraço apertado elevado tão alto, perante a harmonia de um tempo que ficou.
Quando eu andava na escola, tinha uma cestinha de verga, dois olhos assustados no contraste apertado entre a cidade e o campo. Era hoje campesina e agora burguesa.
Antes mesmo de saber, meu pai deixava-me todos os dias uns papeis importantes que me ocupavam o sol do meu dia, desenhos, palavras que, se ainda estivesse acordava, segurava nas mãos orgulhosa para lhe mostrar.
Um dia, minha mãe contou-me acerca da nova escola. Deu-me outro abraço apertado enquanto soluçava a vontade de não me deixar sofrer. Tinha uma malinha vermelha que já segurava nas costas e, a dois passos de casa, aprendi a crescer. Conheci a ansia de saber, viajava num mapa mundi por cima da ardósia negra e riscada, decorei a tabuada, e entre reguadas e olhares carinhosos e assustadores, percebi o meu espaço no mundo.
Quando eu andava na escola, a minha vida era ensinada.
Hoje ouvi acerca de decisões. Não consegui encaixar na minha vivência de menina.
Quando eu andava na escola era tão feliz sem sequer o saber. Simplesmente por nada ter de decidir...

27 março 2009

O mar fala de ti


Como eu gosto desta voz !!!

Igualdade

Quando chego, tenho a cara quente do vento seco, misturada com o pó que já desisti de evitar com o fechar e abrir de vidros, de cada vez que a passagem de mais um, me inunda o carro numa nuvem acastanhada que vem sempre para ficar. Os ares condicionados não me deixam respirar.
Já adivinhei os 10 graus acrescidos na aproximação daquele buraco minstruoso que quaisquer idiotas julgam existir só para chatear o verde da paisagem. O reflexo do sol nos blocos de mármore quase endandeia, o som dos engenhos retira-me qualquer remota possibilidade de usar a buzina do meu carro para me anunciar. Para isso, conto sempre com a nuvem de pó que se eleva atrás de mim e, esqueço-me sempre que, ao travar sou ultrapassada e inundada por mais 2 metros cubicos de tosse.
Sacudo-me só para me convencer que talvez ainda mantenha o ar limpo e arranjado com que sai de casa.
Agradeço a visão do salão cheio de trabalhadores em frente às suas marmitas sobre uma placa tosca de granito, enquanto enxotam os cães filhos do misterio da multiplicação das espécies que nunca entendi.
Tenho fome e não me devia ter lembrado que o ensopado de borrego em Borba costuma acabar por volta desta hora, tenho que me despachar.
Já me habituei à vergonha disfarçada naqueles passos que distam a entrada no salão com tres dezenas de olhos cerrados e carentes em cima de mim. Componho o disfarce e avanço.
- Boa tarde. O encarregado está?
- Tardeee... Nã está.
- (silêncio)... Tenho aqui pólvora para descarregar.
- Ehhh paaa! Mas tamos na hora do almoço. Tem que esperar um bocadinho.
Rapidamente percebo que a próxima frase é determinante para a minha imagem e estatuto.
- Olhe amigo. Deixe estar, eu descarrego tudo sozinha .- digo isto enquanto faço festas no cãozinho que nunca viu agua no pelo e esqueço a vontade de lhe arrancar uma carraça enorme na orelha.
Viro costas ofendida e, apelando ao que resta da minha imagem feminina, orgulhosamente, abro a mala da carrinha e agarro na primeira caixa de 20 kgs. Colocar os dedos por baixo é a parte mais dificil.
Nestas alturas, seria mais facil saltar lá para dentro mas já desisti desde o tempo em que me apercebi de outros pares de olhos contentes e gratos pela minha visão desconcertante e debruçada. Nem pensar nisso.
Uns tossem e outros calam.
Quando já só faltam 3 caixas e já fervo mais que o calor, aproxima-se o ucraniano a palitar os dentes.
- Isto é para descarregar?
- Não.... Tou aqui a brincar!
- Deixe estar que eu ajudo...
Para meu espanto, agarra nas caixitas de rastilho, parecidas com embalagens para bolos de 300 gs. e esboça um sorriso cumplice para mim.
- Isto hoje tá calor! Mas dizem que no fim de semana vai chover.
Engulo em seco enquanto tropeço numa pedra e destruo a postura por completo.
Mais morta que viva e com o sabor do ensopado na boca e a vontade de desatar à chapada aquela gente, retorno ao manjar de almoço.
- Obrigada e boa tarde. O vosso patrão está a minha espera.
Um remoinho de vozes quebram a calma do repasto.
- A senhora desculpe mas é a hora de almoço!
- Não faz mal. Eu preciso de levantar pesos. Até vou agradecer ao vosso patrão porque assim não tenho que ir para ginásios.
Voltei a sacudir a poeira e o ar pesado no fresco do salão. Limpei o suor da testa certa de ter ficado castanha.
Raios partam os alentejanos

Verbo e Gerundio

Componho mulher com verbo e homem com gerundio, enquanto solto uma gargalhada.
Tive que perceber a lição, demorei o tempo de vida e, de feridas, que o próprio tempo curou.
Solto um sorriso ao vento, e esqueço cada momento em que me perdi a querer entender muito para além do que sou, na equidistancia entre o sol e a lua.
Recordo os rios de mulheres de peitos soltos bradando o bastante para o tornar desigual, pouco real. Igualdade não se conquista nem invade, não tem idade nem cor. É minha por dentro neste silencio de gestos, pneus trocados, cabelos revoltos, lágrimas e risos, cremes com lama, perfume com terra e a simples conquista do meu lugar.
Dia da Mulher é um dia qualquer. Como me parecem ridiculas as vozes que soam de entranhas disfarçadas de coragem sem eco nem lugar. Apenas existem nas almas despidas de ser e, numa voz rouca pretendendo arrancar o misterio da própria vida. Somos partes de um todo, metades do mesmo corpo, sons na mesma voz!
Em tempos, quis entender.
Hoje apenas saboreio a diferença harmoniosa, justa e óbvia. A composição de um verso, duas faces do mesmo universo, dia e noite, mar e terra. Adjectivos comuns e substantivos diversos.

26 março 2009

Vontade de mim

O entardecer hoje pareceu-me mais forte.
Carregado de mensagens e sons.
Envolveu-me num abraço de fenos e espargos.
Senti deixar-me levar, como se as loucuras adormecidas houvessem já encontrado outro lugar. O peso das decisões afinal não é hoje, as lágrimas secas limparam-me a alma. Acordada, adormeci nesta calma.
Os meus sentidos lembram as minhas brincadeiras de infância. Absorvo o ar que respiro. Transpiro o peso, inspiro a leveza destes passos envergonhados por só agora saber ver.
Sentada por cima do rio, folheio paginas cheias da minha vida. Revivo as historias como agora. O sol baixa devagar, ensina-me o tempo das coisas, aquece e coloca cada imagem no seu lugar. Como este respirar que me liberta agora, enquanto matizes e cheiros reclamam o meu olhar.
Despi-me da bravura dos gestos e das definições, lavei-me com o fresco da tarde, desafiei as palavras e parei ao sol que resta. Vi-me ainda menina, misturando-me naquela azinheira que me revelou a descoberta em cada toque, que me arranhava os joelhos e feria as mãos pequenas nas minhas tentativas de chegar ao alto e a seguir, gritar, escondida, mais uma conquista. Vi três irmãs de tez queimada, rindo e tremendo, fugitivas da terra e cumplices do mar. No barco virado, nas roupas molhadas, no riso nervoso, perante as lições de vida que me fazem hoje mulher.
Tantas histórias para me contar..
Desci a encosta devagar, deixei-me levar. A planicie, ao longe, refletia o contraste da minha vida. O sonho e a realidade, a musica e o silencio, voar e caminhar. Esperava-me um sorriso que sei fabricado para mim. Gestos adivinhados por amor. O meu sonho era maior... Esta maneira de ser, como oferta de vida e de um lugar em mim.
O meu sorriso é simples, nasce sem eu querer.
Danço as musicas que o meu corpo pede.
Aconcheguei-me nesses braços fortes, capaz de pertencer ali.
Acreditei saber aprender a estender os meus e alcançar o mesmo sonho distante e tangivel, aquecida pelo calor que nunca vi em mim, protegida desta alma sedenta de voar e com medo de cair.
Construi um lugar emerso de gargalhadas e conquistas instintivas, plantei um jardim ao acaso, amei em cada passo, e neste entardecer, confio em mim. Não pertenço aqui, faço-me neste lugar, far-me-ei noutro qualquer, nesta arte de amar e crescer.
Antes amei quase sem querer.
Hoje abraço este entardecer desperta e apaziguada da alma da descoberta de mim, aqui...
Amo os contrarios, colo varias imagens e componho o ideal. Quero o irreal. Encontro-me em cada passagem do horizonte e agradeço esta vontade de mim.




25 março 2009

O Senhor António


Ontem, mais que as meras palavras, ditas ao sol, no meio da poeira branca por onde gosto de acelerar até deixar de me ver, aquele senhor perguntou-me se me podia dar um abraço.
Vi-o aproximar-se com um sorriso na cara, com aqueles dentes brancos e a cara rude de quem se mascara de frio para esconder a vergonha de sentir. Há muito que nos rimos por nada. Há muito que no meio do barulho das máquinas pesadas e de outros homens ainda mais mascarados, ficamos ali como amigos, arriscando falar de nós, da mistura de explosivos com viagens e conquistas, de desencontros de irmãos, do sr Aleixo que insiste em gritar alto a vontade de rir.
Cumprimentamo-nos sempre com um caloroso aperto de mão. Gosto deste gesto. Simples, condensado, polido. Gosto de não me importar com a lama e o óleo que o compõem.
Mas ontem não.
- Posso dar-lhe um abraço? Você é uma amiga que eu tenho!
Rapidamente passei de senhora a menina. Ainda mais depressa encontrei as minhas origens naquelas nuvens brancas e barulho ritmado. Pouco tempo depois, chamamo-nos pelo nome próprio.
Dei-lhe um abraço ainda mais polido e simples que o aperto de mão, mas cheio de significado.
Enquanto falavamos da vida, percebi o significado. Tinha-me preocupado com ele, senhor de um imperio de bulldozers e pedreiras, de voz grossa e sabedora, confuso e agradecido pela mensagem de amiga .
Não há anjos nem monstros, não se grita alto ou só se cala, não há aqui lugar a estatutos nem sequer se fala de tudo. Neste alto de serra, sinto-me em casa, no meio destes homens que outrora me olhavam de soslaio, agora arrisco ser eu, e fazer parte dos sons que me lembram a minha infancia.
Ficamos ali, com a cara seca e o pó a entrar-nos pela boca, sentados em cima de um bloco de calcario bruto e quente do sol, a falar, a rir , enquanto tudo seguia, o mundo girava, ouviam-se vozes a gritar alto para todos ouvirem, a senhora ucraniana de olhos verdes que antes fazia café deslavado, agora torcia barrenas e cabos de aço. O Edgar, continuava a arranjar desculpas pouco validas para ir varias vezes ao escritorio dar um beijinho à mulher. O sr Francisco passou por mim no seu majestoso jipe acabado de comprar com um sorriso renovado e orgulhoso da sua nova aquisição, ao lado levava mais um daqueles empresarios chineses que parecem sempre iguais : - "This is the woman of the explosives" , e voltou a sorrir ainda mais.
Sacudimos o pó mais facil, bebemos um café feito por nós, despedimo-nos com aperto de mão de amigos.
Arranquei devagar para não levantar tanto pó. Levei comigo algo ainda maior, estes momentos pequenos e tão cheios da vida que gosto, da dureza das mãos ao carinho dos gestos e ao significado das palavras suadas.
Na descida da estrada, lembrei-me do sr Arlindo, de boné tombado sobre a testa queimada, do sorriso lindo de quem já viveu tanto, das histórias em que me perco, das palavras meigas que me reconfortam e me lembram o meu avô. Virei à esquerda e só parei no jardim em frente ao alambique . Num minuto estava sentada em familia, no meio dos capacetes e luvas empoeiradas, misturadas com o cheiro a peixe grelhado, do olhar doce da mulher que entende melhor que eu a expressão de assim ter de ser.
Nesta tarde percebi a força de viver, destes momentos, deste lugar.

21 março 2009

Minhas luzinhas

-tia, posso comer mais um rebuçado?
-tia, posso ir contigo?
-tia, viste-me a nadar?
-tia, pareces uma ovelhinha!!!!
-tia, tenho umas cuecas do homem aranha, queres ver???

Manita


A minha mana é linda.
Tem, nos olhos, o mesmo reflexo que eu.
Somos muito mais que irmãs, somos metades da mesma vida, filhas de um velejador de sonhos e de uma menina feita de terra...
Sentimos juntas, rimos juntas, somos tão mais que irmãs.
A minha mana é grande, é tão maior que qualquer rasgo emproado e empoeirado que se diz mulher. Ilumina duas vidinhas que me aquecem a alma, que me secam as lagrimas com a inocencia de me ensinarem que nada mais é importante do que saber amar.
A minha mana é maior ainda. Enfrenta tempestades de cara lavada e conhecedora de cada lição que a vida nos ensinou.

Mulheres feitas de nada, fantoches de prazer, pintadas, deslavadas, enganadas. Pisam a calçada a toque de saltos de cavalo para quem quiser ouvir. Não são nada , são de quem se esquecer de saber olhar.
És tão grande minha mana, na mesma calçada, sabes sorrir e seguir a tua estrada. E olha, estou sempre ao teu lado!

Lembras-te?


Hoje acordaste-me com um sorriso que eu conheço tão bem... Gosto tanto de ti.


Abri o meu livro de memórias, num capitulo eterno que protagonizamos juntas como irmãs.
Naquele sitio gelado, no alto de um monte onde não podiamos ver o rio que seguia sem parar, onde os cheiros dos medronhos se confundiam com os gritos vazios de sentido e as pancadas que nos faziam rir.
Lembras-te de adormecermos abraçadas, feridas e cansadas mas indestrutiveis na garra de sabermos ser? Lembras-te dos nossos ombros magoados e pesados enquanto cantavamos alto para nos fazermos ouvir?
Gritavamos surdas a podridão da vida e o sonho que recusavamos pensar que não existia.
Lembras-te daquela noite fria, cheia de lagrimas impostas e em que, abraçadas nos ofereci um dente de leão que um homem igual me tinha dado? Eu sabia que ainda tinhas o teu! Era a vontade rasgada por cada dentada na nossa recusa em nos deixarmos perder.
Lembras-te daqueles olhares sangrentos, nojentos, que nos despiam ao passar? Lembras-te que nesses momentos, eramos só uma, duas metades de vida prometida e tão pequenas naquele lugar.
As tuas palavras hoje elevaram-me, como sempre, a outros lugares, feitos de nós, da conquista do direito de hoje sabermos cantar ainda mais alto.
Quando às vezes, penso ser alma danada, desnorteada, sem tino e sem reflexo, basta olhar-te e sei que não sou só eu.
Gosto tanto de ti, Marta!!!

18 março 2009

Afinal vivi sonhos...








Conheces o sabor do mar?

Conheces o sabor do mar? Já ouviste o silencio das planicies alaranjadas? Já choraste de vida ? Já gritaste de prazer? Já te perdeste nos sentidos libertos pela madrugada? Já partiste sem destino? Já viveste sem mais nada?
Nas certezas presas, no muro erguido, nas amarras do conhecido, cegaste... Não viste os meus passos apressados a chamar por ti, não viste para além das lagrimas ditas pequenas perante a grandiosidade da vida que não sei ter.
As palavras são rajadas de medo de viver e, olha agora, já sei fugir de ti e desse silencio consentido.
Amo-te muito para alem daqui. Amo-te tanto que aprendi a viver sem ti. Neguei as minhas certezas, embrulhei os medos e ri-me da dor que me fustigou... Saltitei à tua volta até te estontear, quero correr, quero o sabor do mar, quero a realização dos sonhos que os anos nunca me fizeram esquecer. Disse-te ser tua sem o ser, sou mulher e nunca entendeste o meu jeito de ser. Amei-te ainda mais por isso.
Hoje rendo-me às minha origens, folheio os meus livros de infancia e não vejo a diferença, choro saudades passadas e rio-me com a força de querer.
Conheço o cheiro da terra, este sol há-de aquecer este dia e outros que preencherei sem espera de mais nada a não ser a minha verdadeira razão de viver.
Sou menina sabes? Sonho com bonecas e mares.
Estou tão cansada...

O que resta de ficar sem ti?

Nas asas de um sonho feito de mim, enfrento hoje o que me assusta.
O que resta de ficar sem ti?
Desse olhar que não me vê, dessas mãos que me desejam, dos retornos vazios da fantasia de querer perder-me em ti e na vida que sempre quis contigo.
Não foi uma despedida porque as minha palavras ouviram-se noutro lugar.
Não tenho asas, estão perras e caidas, mas sei ser capaz ainda de voar.
Estou parada nesta clareira onde volto sempre e me encontro; neste lugar onde cresci e posso gritar e chorar as lágrimas que me apetecer... Afinal sei parar! Aqui falo comigo e neste medo atroz de reaprender a dizer alto, o estatuto que a minha vida confirma sem ter querido reparar... Tudo está no seu lugar.
Este silencio é-me familiar, somos amigos e existe vida nesta solidão. Estou cheia de mim e desta dor que me acompanha e que reclamou o seu lugar. As palavras são já passado e, nem disseram nada.
Ergo as minhas mãos em honra da minha bandeira, hasteio-a ao vento sem precisar de mais nada. Quero chorar até me cansar e, de seguida, continuar neste lugar.

16 março 2009

Olhos negros e palavras sem vida

Procuro o mistério.
Estou cansada do expectavel e óbvio que este olhar absorve. Nada me surpreende e eu tenho fome.
Como se um ciclo se completasse sempre que penso encontar o inexplicavel, ao virar da página, adivinho o final. Parece tão banal...
As palavras escondem os segredos, os segredos são vontades, as vontades satisfazem-se no mesmo e, o mesmo converte-se em outras palavras para fugir da verdade.
A solidão está cheia de vida, misturada com o pó que descobre uma alma que só se perde no mistério do sonho e da essencia.
Não existe persistencia, não existe coragem, já não se grita mais alto, já não se choram momentos tão cheios de querer, limita-se a sobreviver, a não amadurecer na paz de se deixar ser.
No contraste vejo um sorriso frio, de quem já sofreu o suficiente para poder rir sem porquê. Vejo dois olhos negros numa face bronzeada pelo sol da vida e da dignidade de conjugar as palavras com os sentimentos que me fazem sua irmã.
A coragem de se levantar, de se dizer bonita em frente ao espelho, de baixar os olhos sempre que houve elogios que já não a agitam. Apenas a vida a limita. A verdade de sentir . Tão mais nobre que os dias repetidos da mesma vontade de nada.
Com este olhar, contradigo a maldade implicita e, os jogos vazios deste ser tão inundado de vida, que me faz ter orgulho de ser mulher.

14 março 2009

Memórias de Adriano



"Os cínicos e os moralistas concordam em colocar a volúpia do amor entre os prazeres ditos grosseiros, como o prazer de comer e de beber, declarando-a, contudo, menos indispensável do que aqueles, visto que eles podem perfeitamente prescindir dela. Do moralista tudo se espera, mas espanto-me que o cínico se tenha enganado. Admitamos que uns e outros receiem seus próprios demônios, seja porque lhes resistam, seja porque se lhes entreguem, esforçando-se por aviltar o prazer a fim de lhe tirar o poder quase terrível sob o qual sucumbem, e diminuir o estranho mistério no qual se sentem perdidos."


in Memórias de Adriano - Marguerite Yourcenar

10 março 2009

Conceito de Economia

Segundo Paul A. Samuelson e William D. Nordhaus, Economia pode ser definida como a ciência que estuda a forma como as sociedades utilizam os recursos escassos para produzir bens com valor e de como os distribuem entre os vários indivíduos.
Nesta definição estão implícitas duas questões fundamentais para a compreensão da economia: por um lado a ideia de que os bens são escassos, ou seja, não existem em quantidade suficiente para satisfazer plenamente todas as necessidades e desejos humanos; por outro lado a ideia de que a sociedade deve utilizar os recursos de que dispõe de uma forma eficiente, ou seja, deve procurar formas de utilizar os seus recursos de forma a maximizar a satisfação das suas necessidades.

Não penso, logo vivo...

Há um momento entre a vontade e o bom senso, equiparavel à fronteira entre a realidade e o sonho.
Ajustamo-nos e adaptamo-nos ao ritmo do preço da vida e da nossa própria liberdade.
Quando o dia termina, e nos minutos que antecedem a dormencia, há outro momento de clara e perfeita lucidez, como um rasgar desse espaço entre o sonho e verdade. Há um monólgo continuo ou exaperado advindo dos actos que preencheram um dia. Uma mescla de fantasia que dignifica a vida e de uma realidade que me adjectiva aqui.
Ás vezes admiro os instintos, no seu estado mais puro, reconheço-os em mim como a mais simples identidade. O raciocinio e o somatório de valores adquiridos tingem-nos de mil cores, desviam-nos e contrariam-nos, imperam as vontades e as omissões.
Surpreendentemente, somos seres sedentos do que não temos, porém, ao mais leve esgar de conquista, os nossos olhos buscam de imediato outro horizonte. Na verdade, somos velejadores em busca de farois inalcansaveis na mesma proporção deste imaginário nosso.
Na verdade somos humanos.
A magia do silencio descomprometedor permite alcance do imaginario enquanto as palavras, mesmo que soltas, refletem verdades ou mentiras com substancia, limitam o horizonte desse olhar distante.
Falaram-me do alcance do silencio e eu lembrei-me da armadilha da palavra
Antes falara da voz do silencio.
Os instintos perderam-se na ilimitação das nossas necessidades, caladas e camufladas de palavras inteligentes.
Penso, logo existo.
Será o pensamento fundamento?
Será a existencia o verdadeiro mote de vida? Será que nas diversificações da alma, não nos perdemos já dos próprios elementos?
Não penso, logo vivo...

08 março 2009

Não é só este dia...


Dia da mulher é um dia qualquer, são todos os dias.


Sou mulher, caminhada de rapariga, mimada, protegida e querida. Fui antes menina tão amada.


Sou pequena ainda.


Cedo senti que nada chegava, os meus sonhos distanciavam-se da realidade como barcos de papel que largava na água e ficava a ver partir sem me aperceber de nada. Cedo, nas mãos desse caminheiro de viagens e sonhos que amo o que o meu coração deixa, aprendi a olhar ao longe, a crescer feita do alcance dos horizontes que me mostrava. A alma tremia e outras mãos meigas, amansavam-me e falavam-me baixinho da calma de saber viver.
Cresci assim, segura e selvagem, usurpadora de vida que queria para mim.
Quase me perdi na ânsia louca de viver, quase morri na fuga de me perder.
Sou naufraga resgatada de uma loucura minha que me acompanha e que, nas minhas mãos amanso e atiço, tal como aprendi a fazer. Sou falsa para quem não me vê.
Sou hoje mulher, fruto que quis proibido por medo, por prazer. Sou este ser comprometido por amarras que teimo em querer desprender, de mim, por mim. Preciso delas, não sei estar, não sei ficar.
É como se tivesse passado uma vida a preparar-me para ela. Como se ainda vivesse o preludio da plenitude de viver, de voar de encontro a outros horizontes que esta viagem me mostra.
Amo com todas as minhas forças... Amo a vida, amo este ser que me visita, amo-te mais que as palavras que dizemos, amo ainda mais por sonhar.
Cada vez que sei, que sinto, que desperta em mim uma vontade indomável de partir sem rumo, de navegar sem sentido, fujo… Também sei que mais um momento e partiria…
Já me perdi nas vontades, nas minhas e nas de outros , já me esvaziei em quereres que não eram só meus, já vivi perdida e consciente que o caminho estava a um passo e agora, agora vivo consciente do preço da minha liberdade tão desejada.
Amo, amo de verdade… Sofro e Deliro por amar… Amo a minha verdade, amo a minha vida, amo te , amo este ser que me ama e perdoa com o olhar, amo o Hoje e o Amanhã, amo o que não tenho e desejo mas não quero, para não me perder.
Amo-vos, estrelas da caminhada, magos de sonhos e vidas que me geraram e mostraram a grandiosidade do dom da vida.
Sou banal afinal, sou apenas mulher.

Ser anormal

Ser assim...!?

Lua, fica aí...

Viram o brilho da lua neste fim de dia?
O meu alcance de ver faz-me sempre viajar para outro lugar. Uma planicie castanha e quente, salpicada de azinheiras robustas com cheiro a feno queimado, tornada alaranjada em entardeceres unicos. Tantas vezes me esqueci desta mente louca e lucida enquanto a minha cara ardente e cansada se refrescava à espera destas noites quase sempre assim. Parecem explosões desordenadas e quietas de pontos brilhantes no infinito e, aquela lua tão vivida e guardiã de um caos sedento de nascer.
Sei parar neste lugar.
Já amei aqui. Amei a vida, amansei-me a mim.
Esvazio-me do que já tenho, respiro e aspiro o que ainda quero, esgoto-me antes de chegar ao fim, fui sempre assim. Nada me satisfaz senão estes momentos feitos de nada, noutros olhares apaziguados por uma mão cheia de pouca vida mas suficiente para sorrir. Sinto-me destemidamente assustada com esta mente desordenada, tal e qual a mesma noite a que me rendi.
Sonho com essas mãos grandes, percorrendo o meu corpo agitado, com esse verde de olhar fascinado e cansado de me querer entender. Fugiria no mesmo momento em que visse o mesmo alcance nesse olhar que a pedra que jogo à agua.
Troco as calçadas pela lama, troco as vozes pelo riso, quero tudo e não procuro nada a não ser viver.
Tempos houve em que buscava perdida, a ilusão de querer sentir-me parte da estrada, do caminho iluminado, hoje percebi que nada determina nada, os principios criam-se neste momento, vivo ou morro, fico ou vou, estou na terra ou na calçada. Os meios justificam os fins.
Sou uma mescla do passado e dos sonhos que não me deixam por aqui. Por momentos, chego a desejar ser antes a mão cheia de sorriso, parada, ordenada , mas sei que não sou assim.
Vasculhei caminhos cinzentos, iluminados, vazios e transbordantes de gente, e só aqui, nesta noite silenciosa, percebo a verdade de ter tanto medo de me dizer perdida numa carencia enorme que nunca soube preencher. Tenho tanto medo.
Vou dormir, tentar entender.

07 março 2009

Ser normal

Não é, nem o sol espreitando na janela do quarto, nem o vibrar de vida que a cidade sempre tem pela manhã que sustentam o seu despertar; é antes uma consistencia pesada e dita preenchida que já velara o seu sono agitado. Como uma nuvem escura parecendo iluminada de preocupações só suas, mas revistas no falar de tantas iguais. É a cara, a cor, a estria recem descoberta e encoberta no seu peito necessariamente erguido e à espera de nada. É a loucura de querer ser amada à custa do reflexo que venera ao espelho todos os dias e que calada, nunca deixou de odiar.
É a casa arrumada, aprumada, é a sua cara mascarada antes de ele acordar. É este vazio de nada com laivos de fantasia, que sempre precisou demostrar, como cegueira profunda de qualquer simples forma de ser. É a mentira antes de querer ver. É a sensação doentia de se perder se um dia se limitar a deixar-se viver.
Antes de sair, passou já uma vida, entre camadas de mascaras faciais e cremes e aromas, misturadas com a quarta tentativa para parecer original numa roupa tirada a ferros de um armario feito lugar de culto. Pelo meio, não restou tempo para admirar o rosto queimado de solario e antes deitado a seu lado e muito menos a ultima oportunidade para se dizer bom dia.
A seguir, basta encenar. Rir quando deve rir e chorar quando impera sentir.
À primeira vista perecerá contente. Vive para o mostrar. Procura noutras iguais a confirmação deste sentido de vida, quantificado por adições crescentes na agenda telefónica, de homens que apenas precisam de a querer.
Desdenha da própria vida, do que não quer conhecer. Basta-lhe esta procissão para que se preparou, este cortejo de fantoches de que diz fazer parte enquanto cala uma qualquer e enervante vontade de gritar.
Meu Deus, são todas iguais. São todas normais.
Caminham a pares, riem em bando, assentem e combinam o prazer com a antecedencia assassina de nunca arriscarem o ser unico que pretendem um dia ser. Falam em conjunto, manifestam-se em gritinhos e risadas que nem elas sabem entender. Não sabem nada mas seriam capazes de matar de tédio qualquer mente com uma unica linha de raciocinio.
- Não te apetece mergulhar?
- (silencio, riso)
As luas sorriem e vão, os dias passam sem ela os entender, o mar pressupõe calor e bronzeadores, a lua existe apenas nos livros necessários que lê sem se rever, até o prazer foi ensaiado para parecer banal e especial, fica sempre tudo para dizer.
Horas e horas e horas: cabeleireiros, lojas, cafés, carros imaculados e sem avarias, cinemas e bares sem fumo, conversa do que se deve dizer, comparaçoes gemeas de frustraçoes caladas e ainda os beijos dormentes do homem que nunca poderia ser um qualquer.
Flores e perfumes para ela, dois telemoveis que vibrem quando precisa reforçar o quanto é necessária nesta fatidica procissão de viver, sempre rodeada, sempre, sozinha na mesma vontade de gritar, um dia, sem ninguem a ouvir.
As palavras, essas gritam os contrarios da sua forma de se ver: " É linda", enfeita os quadros daqueles que arrancam dela a sua satisfação e tentam calar qualquer gemido profundo que não querem ouvir. No silencio dos deuses, apenas sabe fugir para dentro de outra qualquer madrugada sem lua, sem nada, enfeitiçada e perdida nas luzes e ruidos e sons capazes de ocultar as vozes caladas do mais fundo do seu ser.
Um dia, sózinha, velhinha, terá que se ouvir.

06 março 2009

Verão que nao vou esquecer

Tinha umas jardineiras que adorava. Eram bonitas, ficavam-me bem no meu corpo recem descoberto de adolescente aspirante a mulher. Com elas, combinava sempre uma t-shirt branca e umas sapatilhas. O quadro ficava completo com o meu cabelo comprido e encaracolado, apanhado atras. Nunca demorava mais de 5 minutos a vestir-me.
O ano passara a correr. Orgulhava-me agora de um esforço quase desumano, pelo menos assim parecia nessa altura. Chegara ali, segurando nas minhas mãos pequenas o bastião da glória alcançada, horas, dias sem dormir com a cafeteira de café ao lado e mil livros espalhados à minha volta. Mas conseguira.
Sentia o orgulho com que o meu pai relatava aos amigos a obvia e expectavel entrada da filha na Universidade, como se nada mais fosse de esperar de mim. Eu assentia, convicta que ele continuava demasiadamente confiante.
Mal chegara, largara as malas e correra para a praia. Só parei mergulhada naquele mar quente e verde que conhecia desde pequena. A vida sorria-me. Lembro-me da leveza daqueles momentos cheios de sonhos feitos de certezas e vontades feitas de fantasias.
Amigos crescidos naquele ano, o calor merecido daquele lugar que me tinha visto crescer Verão após Verão. Sempre adorei esse lugar.
Foi nesse Verão que, segundo a história, me tornei mulher. Numa noite quente, escondidos no areal sem fim, perdidos em beijos que duravam até à falta de ar, secos de sal e molhados de mar, foi nesse momento que percebi que aquela sede não me deixaria mais, como uma necessidade vital que acabara de encontrar. Nessa noite percebi tambem que precisava de me despedir das jardineiras.
Era tão menina. Senti-me tão mulher.
Lembro-me de ser capaz de sentir, pensar, embebedar-me para sempre, o ser em que me envolvia fazia estremecer cada poro da minha pele, o corpo dançava ao som das suas mãos e uma dormencia de consciencia foi baixando em mim. Descobria a fonte da minha vida.
Alguem me dissera que a primeira vez não valia. Para mim foi uma vida de prazer.
Ainda menina sonhara com querer e decidir. Ali, naquele momento, a voz calou-se no mais fundo de mim, sentir era a descoberta de um mar de extase muito maior do que aquele outro que soava tão perto.
Era instintivo, sabia tudo, queria saber mais.
Nesse Verão de que me lembrei hoje não voltaria a mesma menina e nem me sentiria mais mulher. perdi-me nessa noite na descoberta de sentir prazer.
Quando as férias terminaram e encarei a escadaria da universidade pela primeira vez, demorara quase uma hora a vestir-me. Umas calças de ganga e a mesma t shirt combinada com um lenço na cabeça que o "meu namorado" me oferecera.

05 março 2009

Ser mulher e menina






"um dia, já eu era velha, um homem dirigiu-se-me à entrada de um lugar público. Deu-se a conhecer e disse-me - Conheço-a desde sempre. Toda a gente diz que você era bonita quando era nova, vim dizer-lhe que, para mim, acho-a mais bonita agora do que quando era jovem. Gostava menos do seu rosto de mulher jovem do que aquele que tem agora, devastado"(...)
"Muito cedo na minha vida foi tarde demais. Aos dezoito anos já era tarde demais. Entre os dezoito e os vinte e cinco anos, o meu rosto partiu numa direcção imprevista. Aos dezoito anos envelheci. Não sei se é assim com toda a gente, nunca perguntei. Parece-me ter ouvido falar dessa aceleração do tempo que nos fere por vezes quando atravessamos as idades mais jovens, mais celebradas da vida. Este envelhecimento foi brutal. Vi-o apoderar-se dos meus traços um a um, alterar a relação que havia entre eles (...). Em vez de me assustar, vi operar-se este envelhecimento do meu rosto com o interesse que teria, por exemplo, pelo desenrolar de uma leitura. Sabia tambem que não me enganava, que um dia ele abrandaria e retomaria o seu curso normal. (...). Conservei esse novo rosto. Foi o meu rosto.
Envelheceu ainda, evidentemente mas relativamente menos do que deveria. Tenho um rosto lacerado de rugas secas e profundas, a pele quebrada. Não amoleceu como certos rostos de traços finos, conservou os mesmos contornos mas a sua matéria está destruida. Tenho um rosto destruido"
Marguerite Duras "O Amante"
Introdução brilhante a um livro que me marcou. Revejo a estranheza, a familiaridade com que na minha face os contornos antagonizam a expressao da minha alma. Sou uma estranha em frente ao espelho. Sou cumplice desta assimetria dubia, revejo-me nas expressões de outrora, surpreendo-me com esta sede presa neste olhar. Os anos deixaram marcas em mim que teimam em se ver e outras que vistas, nada deixaram a não ser uma vontade atroz de recomeçar ou reiventar.
Nos meus passos de menina, sentia-me mulher, neste andar aparentemente maduro, sinto-me menina, vejo-me mulher.

02 março 2009

As ruelas da minha vida

Havia uma ruela suja, com um carreiro de agua de esgoto no meio, escura, com um cheiro nauseabundo que não sentia, naquela dormencia de sentidos. Se estendesse os braços, seria capaz de tocar os dois lados de paredes cinzentas e mesmo assim nada ver.
Curiosamente, de todas as vezes que descia aquela vereda, pensava no necessário cuidado com que se vestira, de cores e contrastes, como se pretendesse brilhar no meio da podridão... Mesmo assim nunca veria que as cores se perdiam na pobreza do seu andar.
No fim da descida, havia uma clareira de cimento, onde um bando de putos ranhosos e eternos costumavam entreter-se a jogar "ao murro e ao apalpão", também não os veria, bastava antever a costumeira agitação no recanto que ficava mais adiante. Ouviam-se gritos raivosos das mães na sua direcção, haviam estaladas soldas e sem perdão, havia tanta ilusão.... Mas na verdade, essa apenas habitava quem ali se servia, já muito antes aquelas mulheres haviam deixado atrás o ultimo rasgo de fantasia e agora esgotavam em cada passo a sua própria desilusão.
Ela não!
Ela bebia a fantasia, agarrara-a na sua mão, na outra escondia o fruto da conquista feita de mais um pedaço da sua inocência vendida a troco de quase nada, o suficiente para mais uma debandada de qualquer razão. Nos olhos envoltos no mesmo cinzento das paredes das casas, o brilho dera lugar ao vazio de louca consciente, carente e esfomeada.
Teimava sempre em ficar, aquele lugar atraia-a, não eram os putos, não eram as mães, era a materialização da loucura de ainda se dizer forasteira, vendia sorrisos e gestos consentidos, venderia o corpo se fosse preciso, mas teimava sempre em ficar...
Sentava-se no chão de cimento, a sua alma já havia partido numa viagem sem rumo, tal e qual sempre quisera, e ouvia as historias daquele homem que a olhava como se fosse sua... Nessa altura o tempo parava, nada mais importava, aquele homem seria o unico semblante de Deus que alguma vez encontraria. Naquela ruela, numa qualquer barraca, jurara promessas falsas em troca de fantasias e alienações de uma vida que não parecia ser a sua... Também essa nunca veria.
Hoje ainda guarda o cheiro dessa ruela escura, mais pequena, mais cinzenta, das caras molhadas e vozes rasgadas que sempre calou, ainda sente aquele chão frio onde se sentou, já não pertence ali mas reconhece agora que as cores e matizes com que se fantasiava não eram mais do que a pura evidência da sua negação.
De vez em quando, noutras ruelas iluminadas que hoje visita, reconhece as faces da sua própria cara nas mesmas vozes escarpadas que nunca deixou de ouvir.