Enquanto vasculhava na mochila em busca do que já sabia não encontrar, de cara a ferver, de raiva e vergonha, de uma mistura de memória e desconhecimento presentes, pensava que esta cidade me é estranha no seu embaraço. Tornou-se fria dos cheiros de outrora, frenética nos passos e nas horas, sentida de uma moléstia que aqui mora, perdida, sofrida. Já calcorreei o mesmo caminho, já me despi da vergonha que hoje sinto. Que sinto agora, sinto de mim e do que me assola.
Chegara cedo, tinha tempo, tinha um compasso só para mim, para passos saboreados nestas ruelas com cheiro a sardinhas e a conversas nas janelas. Os sentidos invadiram-me de uma nostalgia sempre nova. Saudade das varinas e da gritaria matinal, das lides e vozes nas ruas, de noites terminadas em madrugadas enfeitadas de conversas à beira rio, de espreitar nas portas e adivinhar as vidas que lá dentro se viveriam. Saudades de uma parte de mim.
Procuro nesta cidade, o que esqueci. Por isso me encontro, de olhos perdidos, aqui e ali, vou sorrindo enfim às caras que me olham, e eu a elas, silenciosas no que escondem e se vê. Lembro-me de pensar que tinha fome, fome de iscas e de chouriço assado, qualquer coisa assim. Parada num quiosque que outrora seria preferencialmente alusivo a Lisboa nas telas em voga, não agora, agora é uma barraca de ferro descartavel e desdobravel, com um casal brasileiro atrás da amalgama de revistas com as mesmas capas e as mesmas "descobertas". Olho a mochila, olho em volta e não a vejo. Não me lembro.
Pergunto, corro, faço o caminho de volta e tremo, o meu cerebro vazio não me responde. Fui roubada naquela rua? Onde?
Fui, nalgum sitio.
Recuperada a carteira de uma casa de banho imunda, despida até da mais insignificante moedinha, quase visualizo o frenesim e a alegria de quem quer que seja, antecipo a ida e vinda, o desnorteio, a pedra com cheiro de podre, a face baça de anseio sem sentido, vem-me o cheiro à boca e tenho vergonha deste silencio que me rodeia, desta solidão subita, de um medo de onde venho e para onde caminho.
Cidade triste, cheia de pressa que nem sente que morre aos poucos, nas caras tristes nas janelas, em silencio, nas lojas asiaticas onde antes moravam tasquinhas, nas vozes roucas, sem sorrisos, na doença disfarçada.
Tenho este sabor ainda na boca, de não reconhecer o caminho