20 março 2011



Estou aqui... Sentir-me cheia como esta Lua que hoje me encanta e encandeia. Soubesse eu escolher de entre as palavras que ainda não sei, as que gritassem cada sentido exaltado de mim. Os acasos dançam na minha mente, sublinham as perguntas que não ousei, reforçam as respostas que me dei, estranho olhar o meu, desfocado sobre estes dias que não senti. 
Soubesse eu arrumar cada pensamento ao lado de cada memória, soubesse eu a história que fica por contar. Esta vontade de gritar inteira, abraçar a lua que me despe em cada noite assim, cheia, esta sede de me entender e perdoar, de me abraçar na fé que cada passada poder ser a desordem que me dá calma, poder ser memória e  madrugada renovada num ser maior. Soubesse eu armar o meu castelo no cimo do caminho, onde o vento sopra bem forte e me fortalece cá dentro, onde ninguém me descobre, nem questão nem resposta, apenas a tela que pinto, o que sinto, o que sinto...

Há dias, procurei-me... As lágrimas escorriam-me pela cara, sentia um frio cá dentro, precisar de me lembrar que estive ali, tão distante, que me esqueci das caras de quem tratou de mim, quem chorou e me deu a mão, a cama onde volvi a mim. Tinha feito todas as perguntas, mal ouvi as respostas porque pareciam continuar a não falar de mim, aceitei sem expressão, a história que contam... "Foi muito grave"... Agradeci mas não sei, aceitei...
Nada me era estranho, o carinho familiar com que a senhora de branco me falou, como se já a tivesse visto em algum lugar, não sei qual, não importa, vou vê-la muitas mais vezes, vamos tratar de mim até ficar bem. Agradeci, parece que fiquei em boas mãos neste tempo que esqueci, mas e agora? Se eu preciso de entender, de me lembrar que foi mesmo grave.
Subi ao segundo andar e perguntei a um senhor se se lembrava de mim, ele riu, lembrava-se bem, indicou-me a direcção da sala onde estivera. Contei os passos nessa direcção, olhei a plaquinha azul numa porta "Cuidados Intensivos" e achei que devia estar enganada, nunca estivera naquela sala tão equipada para "casos graves". Segui, mas a porta abriu-se e uma cara risonha, estranha, chamou-me, quente, tão quente que me arrepiou. "não me lembro de si, desculpe, não me lembro de ter estado aqui". A voz quente, segurou-me a mão e conduziu-me lá dentro, e o silencio encheu-se de saudação, e fiquei rodeada de gente a falar de mim. Parece que deixei memória, menos em mim, que me portei mal, quis bater naquele senhor que teve que me amarrar, e dei parte da minha refeição a alguém , que tentei fugir sem saber, que tive conversas imensas com este e aquele e nem estava ali... O que se passou comigo? É tão estranho... Pedi desculpa, aceitei aquelas mãos e a alegria de estar "tão bem" e saí com as lágrimas cada vez mais duras a lavarem-me a cara, saí de braços caidos, sem a memória que preciso para entender o que me contam.
A S. teve um enfarte e uma paragem cardiorespiratória, esteve 30 minutos a ser reanimada, se não estivesse aqui, não teria sobrevivido, esteve dias sem se saber se iria acordar, se iria recuperar... E eu não me lembro de nada... Apetece-me gritar-me, abanar-me, agradecer, responder-me a todas as perguntas que me assolam. Mas fico assim, calada, faço as viagens necessárias a conversar comigo, a exercitar a memória, e não consigo.

Por isso, estou aqui, sinto-me cheia como esta Lua, esta vida renovada que se transforma, as arestas mais claras, as formas da minha história, o cais seguro a que me amparo nas noites de trovoada da minha memória, fico assim, lúcida e desnorteada, crente nas mãos quentes que me aquecem, nas palavras que me ofertam, na força da minha vontade e do meu corpo. Dizem que sou muito forte. Eu sei que sou... às vezes esqueço-me!

04 março 2011

Entre mim e o vento, há uma lágrima quente
que me acarinha a face molhada.
Esta névoa encantada em que me envolvo nos fins de tarde, tão clara que vislumbro cada despojo que o mar ainda abraça e eu penso se será ele o derradeiro criador de sonhos e verdades. E pergunto-me, "Que verdade, se eu mesma não me revejo nas palavras e porém os meus gestos despiam-me das amarras e eu, flamejada de vergonha olhava-te... Naqueles momentos em que te julgava distante e impenetravel e ousava quebrar a minha cara disfarçada. E pensava no meu tamanho ali despida, se era desejo ou revelação, se por um instante, o silencio dos teus olhos eram a palavra que me esqueci de aprender a ouvir. Se era a minha verdade guardada no  recanto mais empoeirado de mim.
Cada vaga parece-me um conto agora, não vislumbro ilhas ou enseadas, não consigo, vejo os despojos que desfalecem nos meus pés descalços e, no entanto, cada um se desenha harmoniosamente na praia, nos contrários dos elementos, como se criasse esta história. E eu, penso, "Que arrogância a minha, querer tomar conta dos verbos e dos gestos, se uma lágrima apenas diria do meu medo e do meu credo, da minha ancora e do meu recanto, se os meus olhos falavam da minha sede de ser, um momento, de crer ..."
E revejo o tempo, não a cronologia dos passos, vejo os espaços que me distanciam, a ironia com que estes pedaços se ajustam e me mostram que sem contornos, és parte de mim, de uma memória presente, nos caminhos que me trazem aqui, sempre.
Ainda me fascinam os fins de tarde. Ouvi que morri e renasci, e tudo passou tão longe. Não que queira saber assim de mim, não que a consciência me acrescente, apenas percebi o meu horizonte, que cada instante é do tamanho que nele me envolver. Conheço-me? Não sei...
Sei ver-me assim, fascinada com a ironia dos acasos, com as minhas mãos fechadas capazes de segurar o mundo, confundida com os sorrisos oferecidos, os abraços desabrigados, com estes estilhaços tão vivos que se acercam... Ainda ouço falar de mim sem me ver.
Vejo-me uma, duas, poucas vezes, num suspiro profundo que me não enche, na minha sede inconsciente de nudez em frente a ti, vejo-me nos contornos da minha mente despercebida de mim, lá no fundo onde ninguém habita, nos sorrisos soltos que fazem parte dos meus contornos. Não sei viver sem sorrir.
Apetecia-me esbofetear este tempo, este ocaso, este mar cinzento e imenso que me rasga por dentro e não me deixa dormir. Apetecia-me sorrir grata, pelo sentimento que me abarca, pela ausência presente, marcada cá dentro em silencio, antónimo da palavra já gasta de não ser capaz de me ver noutra cara. 
Apetecia-me falar desta vida crescida em mim...
E do tempo que me marca a cara e não passa.
Apetecia-me assim, não ser preciso a palavra.

03 março 2011

Mais alto

Mais alto, sim! mais alto, 
mais além do sonho, 
onde morar a dor da vida,
Até sair de mim! Ser a Perdida,
A que se não encontra! 
Aquela a quem o mundo não conhece por Alguém!

Ser orgulho, ser àguia na subida,
Até chegar a ser, entontecida,
Aquela que sonhou o meu desdém!
Mais alto, sim! Mais alto! A intangível!

Turris Ebúrnea erguida nos espaços,
À rutilante luz dum impossível!
Mais alto, sim! Mais alto! ode couber 
mal da vida dentro dos meus braços,
Dos meus divinos braços de Mulher!

Florbela Espanca

02 março 2011

Palavras minhas

Palavras que disseste e já não dizes, 
palavras como um sol que me queimava, 
olhos loucos de um vento que soprava 
em olhos que eram meus, e mais felizes. 

Palavras que disseste e que diziam 
segredos que eram lentas madrugadas, 
promessas imperfeitas, murmuradas 
enquanto os nossos beijos permitiam. 

Palavras que dizias, sem sentido, 
sem as quereres, mas só porque eram elas 
que traziam a calma das estrelas 
à noite que assomava ao meu ouvido... 

Palavras que não dizes, nem são tuas, 
que morreram, que em ti já não existem 
— que são minhas, só minhas, pois persistem 
na memória que arrasto pelas ruas. 

Pedro Tamen, in “Tábua das Matérias”

01 março 2011

Hoje subi a serra. Escolhi a encosta soalheira, onde habita aquele vento frio e cortante que nos assola a cara e desperta. Conheço o caminho no meu pensamento e, não sei porquê, hoje envolve-me a saudade. Por isso, desabrigo-me destas vestes adequadas e caminho nos meus sentidos. Esta serra já foi meu abrigo, minha seara de sonhos e minha foz de palavras. Tenho sede de palavras, não descritas e opacas, sinto falta das palavras que parecem suspiros, que nos saem da alma em torrente, porque mais do que o medo, há uma fome de ser por inteiro, de dar contorno aos cantos de nós, os mais recondidos e temidos e porém, os mais genuinos e precisos.
Tambem sinto falta do silencio, de olhos perdidos na planicie, aquele que diz tudo. Sinto falta de um momento uno.

Hoje pensei nas caminhadas interminaveis que fiz sozinha, e preferi-as assim, como de costume, habituei-me a atrapalhar-me de pessoas, a esvaziar os meus espaços do esforço de me integrar, aprendi acerca das roupas que gosto, da verdade desadequada, da minha sede de fuga que nunca soube explicar, e no entanto, em algum lugar, fui eu mesma a fechar as correntes, por medo ou pela simples percepção dos caminhos insanos que chamam, que cheiram, que me espelham mesmo assim. 
Do cimo desta serra, aspiro a minha verdade, as lagrimas que semeei aqui, a leveza, o abraço, o direito de, por um momento, não me pertencer só a mim. Tenho saudades do retorno no mesmo compasso, saudades de uma leveza na minha alma que agora ainda pesa tanto. Saudades da palavra cheia de uma verdade que não sabia existir. 

Por vezes preciso de me encontrar, de olhar o meu reflexo , de encontrar este lugar em que semeei o mais fundo de mim, sem saber da colheita, sem cuidar da semente, fruto de cada sentido liberto, cada grito de silencio que deixei aqui. Não sei crer ser mesmo assim, desaprendi a capacidade de me dar assim, tanto, invadem-me as historias repetidas, os contos esgotados a meio, a busca perdida por qualquer anseio, sem paragens, sem moradas, as gargalhadas que ouvi, a banalidade que moldei, a certeza que tal como agora, já não chegaria este aqui, este silencio estrondoso que ainda toma conta de mim.
Estaremos perdidos na sede, nos esgotares sucessivos, nos bocejos, no meu medo e meu descredito, neste compasso de tempo que parece sem fim? 
Hoje subi esta serra no meu pensamento para falar de mim, homenagear a saudade do silencio e do abraço, do tanto feito nada e deste hemisferio soalheiro de mim.