08 abril 2016











De todas as palavras escolhi água,
porque lágrima, chuva, porque mar
porque saliva, bátega, nascente
porque rio, porque sede, porque fonte.
De todas as palavras escolhi dar.

De todas as palavras escolhi flor
porqariaue terra, papoila, cor, semente
porque rosa, recado, porque pele
porque pétala, pólen, porque vento.
De todas as palavras escolhi mel.
De todas as palavras escolhi voz
porque cantiga, riso, porque amor
porque partilha, boca, porque nós
porque segredo, água, mel e flor.
E porque poesia e porque adeus
de todas as palavras escolhi dor.

Rosa Lobato de F

03 fevereiro 2016



"A parte desconhecida da minha vida é a minha vida escrita. Morrerei sem conhecer essa parte desconhecida. Como foi escrito isto, porquê, como o escrevi, não sei, não sei como isto começou. Não se pode explicar. Donde vêm certos livros? A página está vazia e, de repente, já há trezentas páginas. Donde vem isto? É preciso deixar andar, quando se escreve, não devemos controlar-nos, é preciso deixar andar, porque não sabemos tudo de nós próprios. Não sabemos o que somos capazes de escrever.Conheci grandes escritores que nunca conseguiram falar disso - conheci Maurice Blanchot e Georges Bataille intimamente, conheci Genet, creio que menos. Eles nunca sabiam, nunca falavam disso. Penso que é errado, aliás. Há trinta anos, era uma espécie de pudor aprendido, em parte, na escola sartriana, não se podia falar daquilo que se escrevia, não era decente - e penso que em Les Parleuses é a primeira vez que alguém fala disso, pelo menos uma das primeiras vezes. É bom falar disso e, ao mesmo tempo, é muito perigoso dar a ler textos antes de estarem terminados.(...) Após o final de cada livro é o fim do mundo inteiro, é sempre assim, de cada vez. E depois tudo recomeça, como a vida.Quando se escreve, não se pode falar em vez de escrever. O que se passa quando se escreve, nunca se pode dizer. Eu consigo ler uma passagem, mas depressa fico assustada.Sou mais escritora do que vivente, que uma pessoa que vive. Naquilo que vivi, sou mais escritora do que alguém que vive. É assim que eu me vejo"

Marguerite Duras in Mundo Exterior


22 janeiro 2016

Pai




Um dia partirei, nada digo nem direi. 
Ao acaso sem destino e rumo incerto em noite de breu na lua ausente que não denuncie os meus passos e não sucumba no gesto.
O coração nas mãos bem firme para que não vacile e eu não me perca no olhar para alem da escuridão.
Garganta embargada e peito num aperto e já a dor de alma.Por montes ou vales ou pelos trilhos ainda nada do novo encontrei e em cada passo trôpego ou firme a lembrança chorando do que para trás deixei.Muito amor chorado ficou!Mas no caminho desconhecido talvez no dobrar da curva ao longe o sol desponte e surja o mar e para trás a montanha tão distante.À deriva um barco e eu, a maresia que me alimente e quem sabe se a leveza me reconforte.Ou naquela praia envolto na espuma reste exangue.

15 janeiro 2016

Manuel Aleixo
evoco-a no remanso secreto dos meus pensamentos e na saudade de um tremendo vazio. Alinhavo estas palavras sem guião, nesta sala cada ladrilho do chão e os pequenos ruidos são ela ainda, no quarto ao lado não desfeito, olho-o e mesmo na escuridão da noite quando me encaminho para o meu como que ainda convivemos no jeito carinhoso de despedida, um boa noite! Conversamos sob o conselho eterno da sabedoria que eu não fui capaz de saborear de todo, como se tivessem esgotado as respostas para as perguntas que inevitavelmente são feitas depois. Como se ela jamais atravessasse aquela ponte num adeus sem regresso.
Hoje, seis de Abril, comemoraríamos mais um aniversário! Nunca é de mais, é sempre tempo para a clarividência de não esquecermos quem devemos imortalizar enquanto vivermos. Numa outra evocação à memória do meu herói-pai, escrevi e agora repito: “que as minhas filhas saibam recordar-me um dia, quando fôr a minha vez de palmilhar trôpegamente a laje do meu irreparável adeus”.

Por ti, meu pai, homem da minha vida.


A Máquina do Mundo

E como eu palmilhasse vagamente
uma estrada de Minas, pedregosa,
e no fecho da tarde um sino rouco
se misturasse ao som de meus sapatos
que era pausado e seco; e aves pairassem
no céu de chumbo, e suas formas pretas
lentamente se fossem diluindo
na escuridão maior, vinda dos montes
e de meu próprio ser desenganado,
a máquina do mundo se entreabriu
para quem de a romper já se esquivava
e só de o ter pensado se carpia.
Abriu-se majestosa e circunspecta,
sem emitir um som que fosse impuro
nem um clarão maior que o tolerável
pelas pupilas gastas na inspeção
contínua e dolorosa do deserto,
e pela mente exausta de mentar
toda uma realidade que transcende
a própria imagem sua debuxada
no rosto do mistério, nos abismos.
Abriu-se em calma pura, e convidando
quantos sentidos e intuições restavam
a quem de os ter usado os já perdera
e nem desejaria recobrá-los,
se em vão e para sempre repetimos
os mesmos sem roteiro tristes périplos,
convidando-os a todos, em coorte,
a se aplicarem sobre o pasto inédito
da natureza mítica das coisas,
assim me disse, embora voz alguma
ou sopro ou eco o simples percussão
atestasse que alguém, sobre a montanha,
a outro alguém, noturno e miserável,
em colóquio se estava dirigindo:
“O que procuraste em ti ou fora de
teu ser restrito e nunca se mostrou,
mesmo afetando dar-se ou se rendendo,
e a cada instante mais se retraindo,
olha, repara, ausculta: essa riqueza
sobrante a toda pérola, essa ciência
sublime e formidável, mas hermética,
essa total explicação da vida,
esse nexo primeiro e singular,
que nem concebes mais, pois tão esquivo
se revelou ante a pesquisa ardente
em que te consumiste… vê, contempla,
abre teu peito para agasalhá-lo.”
As mais soberbas pontes e edifícios,
o que nas oficinas se elabora,
o que pensado foi e logo atinge
distância superior ao pensamento,
os recursos da terra dominados,
e as paixões e os impulsos e os tormentos
e tudo que define o ser terrestre
ou se prolonga até nos animais
e chega às plantas para se embeber
no sono rancoroso dos minérios,
dá volta ao mundo e torna a se engolfar
na estranha ordem geométrica de tudo,
e o absurdo original e seus enigmas,
suas verdades altas mais que tantos
monumentos erguidos à verdade;
e a memória dos deuses, e o solene
sentimento de morte, que floresce
no caule da existência mais gloriosa,
tudo se apresentou nesse relance
e me chamou para seu reino augusto,
afinal submetido à vista humana.
Mas, como eu relutasse em responder
a tal apelo assim maravilhoso,
pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio,
a esperança mais mínima — esse anelo
de ver desvanecida a treva espessa
que entre os raios do sol inda se filtra;
como defuntas crenças convocadas
presto e fremente não se produzissem
a de novo tingir a neutra face
que vou pelos caminhos demonstrando,
e como se outro ser, não mais aquele
habitante de mim há tantos anos,
passasse a comandar minha vontade
que, já de si volúvel, se cerrava
semelhante a essas flores reticentes
em si mesmas abertas e fechadas;
como se um dom tardio já não fora
apetecível, antes despiciendo,
baixei os olhos, incurioso, lasso,
desdenhando colher a coisa oferta
que se abria gratuita a meu engenho.
A treva mais estrita já pousara
sobre a estrada de Minas, pedregosa,
e a máquina do mundo, repelida,
se foi miudamente recompondo,
enquanto eu, avaliando o que perdera,
seguia vagaroso, de mão pensas.
Carlos Drummond de Andrade



07 agosto 2014

Há um campo sobranceiro à minha vista, outrora pleno de girassois concordantes, agora vazio e sem cor. Alguém desistiu, de pintar de cor o horizonte.
Hoje existe um vazio que não me deixa, como essa terra sedenta  e sem fonte.
Um esquecimento, uma mescla de mim sem me deixar ser.
Hoje ilumino-me de silencio, um calar de palavras na espera de se fazerem ouvir.
Sou assim? Não sei.
Tenho o coração cheio de vazio, tenho o mesmo medo que não enfrento
De um grito, expirado, muito alto, cá de dentro, de dar voz a este silencio

Depois viajo, prefiro o campo como o vejo
Prefiro o sonho de ser enfim
Tão imperfeita, tão cheia de mim

- Escreve. Fala por fim o que te cala tanto. O que esperas para te falares, gritares da omissão das palavras mudas e dos silencios que não se ouvem agora?
- Escreve. Se o sonho ainda respira com a mesma força que os ocasos se sucedem, um após outro sem que em ti nada os sustenha. Os teus dedos tremem de sede, de vontade, de medo, de fim que se avizinha enfim, recomeço?

Tudo à minha volta me parece dormente, desconexo, outrora esperançosa de uma ilusão que não cega nem entorpece, sou hoje a mesma alma, sem quase gente. Sou quem escreve, sem saber quem fala, quem cala e adormece. Sou fora de horas, sou ainda, agora. Sou quem me escreve.


22 julho 2012

O vento sopra ali fora, toca-me de quando em vez. A copa alta que me viu crescer, mais crescida que eu, dança hoje reconhecida. Tantas vezes abri esta janela sedenta de um ar que não sabia aspirar, tantas vezes olhei lá fora rostos ocupados de um movimento que não me atrevia a entender. Depois de um dia cheio de palavras, recolhia-me aqui, despia-me. O que ontem fora magnificência retornara à banalidade que me oprimia, os versos antes fascinantes eram afinal lidos e os gestos não eram ternos, eram por demais carnais e eu, eu ainda sonhava saber pintar nos rostos da minha vida, a minha fantasia, a minha procura. Entendes agora?  Como, se nem eu me entendo?
Sossegavam-me as viagens porque nas paisagens correntes eu vislumbrava mil horizontes. Imaginava um rosto terno, sereno de tão desassossegado, tão molhado e faminto como o meu. Oferecia-me perder-me das horas e dançar e cantar alto, e contar-me histórias. 
Não, não era só isso. Construi a tua cara enquanto dançava, desenhei-a com tanto carinho, ouvi a tua voz cá dentro, conversei tanto em silencio. Procurei-te mais ainda. Não te vejo. Não te encontro.
Toda eu me tornei medo.Turbilhão este que me não deixa. Medo que se tornou matéria, e me doi cá dentro.  Enquanto de olhos cerrados, te via, era importante dar-te um abraço apertado e soprar-te ao ouvido o que deveras sou. Sou unica, pequena e grande de mim, sou mãos dadas contigo, mas espera, tenho medo, por isso, tens que saber antes que vejas, que sou igual, faço birras e sou mimada, mas amanhã vou precisar de estar só comigo se hoje é em ti que me abrigo. Dizem que tenho mau feitio, não sei o que fazer da normalidade da vida e vou-te amar se me levares onde não conheço, se me tocares onde sinto e não finjo, se as tuas palavras me derem um silencio que aguardo há demasiado tempo. Mas olha, tenho este defeito, tenho muitos, e tenho medo que me vejas, se é só isso que peço. Vês esta ruga? Vês a minha cara? Amas-me mesmo? Espera. Há tanto que calo. Faria tudo por quem gosto, mas fujo sempre. Cá dentro, em todos os momentos, acarinho os poucos que me habitam, quero-lhes bem, mas faltam-me as palavras e a presença, canso-me. Mas sinto-me tantas vezes só, só demais para o meu cansaço.
Penso agora ao teu ouvido, quando divago, os meus dedos correm, as palavras gritam e agora, agora que me dispo no teu abraço, tremo por dentro, e choro. Amas-me ainda? Não acredito que não seja menos pela doença, pelo medo, não acredito.
E depois há aqueles poemas e prosas que não sou eu que digo. Tenho medo.
Quando a árvore lá fora ainda era pequena, encenava conversas contigo. Deternos-iamos no mesmo passo do caminho, por um instante, um abraço bastaria, um compasso no tempo, um sentido novo, intimidade, palavra que mal conheço.
E agora? Que no largo da minha memória, acrescentei a vergonha?  Um rasgo de fogo, o maior de todos trespassado na minha cara. Preciso que saibas que sou boa pessoa, só penso em demasia, a minha mente não pára e não me acompanha no tempo. Por isso me visto, por isso fujo, sempre. E sofro.
Tenho manias, que sei tudo, que não sei nada, desenquadrada, construo mundos, caminho em passadas largas, mas respiro cada minuto. Tenho muitos anos, mais do que crescimento, e tenho tanta sede ainda.
Hoje, arvore crescida, e eu ainda pequena.
Amas-me ainda?
Espera, aperta-me mais ainda.
Existes?



28 junho 2012

Não tenho aqui vindo e porém, neste tempo formei dezenas de desenhos de palavras sentidas, revi-me em passadas, em imagens que a minha memória guarda, misturadas de sonhos coloridos, pinceladas. O que escrevo seria o meu reflexo de sentidos. Por vezes esqueço-o e penso. E deixo de saber sentir e escrever.
Há pouco abri as janelas de par em par. Sentei-me lá fora num silencio pedido. Este silencio cheiroso que me leva para fora de mim. Olho-me de longe, envelheci, desapetece-me esconder-me nas mascaras com que me vestia, as minhas mãos estão mais rugosas, a minha voz mais calma, menos apaixonada, os meus silencios maiores e ruidosos. 
A minha filha pequenina dorme agora e, pouco mais importa. Tenho um mundo nas mãos para lhe mostrar, aceitei-me em nenhum lugar e permito-me mil sonhos de menina. Recordo o tempo em que o mundo era pequeno para a minha fantasia, em que construia outro, mesclado de lugares inventados de caras por quem me apaixonava. Mais tarde procuraria encontrar cada uma. Nunca conseguia. 
Espero que ela acorde, retiro-me o cansaço e falo baixinho, na esperança que não me ouça, que me sinta, o meu desassossego, a minha herança desenquadrada, e de mansinho calo-me de palavras, rio com o seu sorriso de crer que vemos o mesmo, mesmo que nesse lugar nenhum.
A minha filha pequenina vale tudo, as ruinas de cada sonho, a paragem.
A minha filha é cada dia que passa, o meu novo mundo.

11 março 2012

Há um ano, estava perdida de mim, os acasos ainda agora me atormentam, se por uma voz me vejo aqui agora. Estava onde me não lembro, estava morta ou mais que viva. Era mãe e não me lembro, havia  um  ser por que tanto lutei, pequenina e eu, não me lembro, não me lembro. Há um ano,celebrava a vida e devolvi-me da morte. Morte, uma palavra que mal pronuncio, como se me garantisse a sua negação. Toda a minha vida brinquei com ela, e nesta noite fria, as minhas mãos molhadas tremem pela pequenês, pela ironia que me cala.
Há um ano, tive uma filha que me dá vida.
Há um ano, quase perdi a minha.

Hoje não me apetece a prosa nem a musica que as palavras cantam, preciso respirar fundo escrevendo, sinto um grito cá dentro, tão calado que me dá medo. Não me vejo em nenhum sitio e existo, vivo e grito. Vivo de um sentimento tão forte e ainda desconhecido, a minha flor pequenina que me dá vida, no resto, sou uma imagem baça do que sinto, sou silencio e desencanto.  Há um ano, fugia-me a vida, sem me dar conta, não me lembro, ainda agora me esforço e as imagens não chegam. Olho para trás e dá-me vontade de rir, o forte que sou de tão pequena me sinto, e ao invés, caem-me lágrimas num desvario que não conhecia em mim, agarro-me a mim, abraço-me, esqueço-me porque preciso de ser mais sana que sentida.
A minha filha é linda, todos os dias assisto a momentos que guardarei sempre. Dedico-lhe a minha vida, por inteiro, e por isso sou mais forte ainda, mas cá dentro, grito, esperneio. Não me vejo.
Estou cansada de palavras, só queria alivio, calcorreio caminhos interminaveis em pensamento, olho em frente, cega de um desejo que já não creio, já não bebo, e tenho sede, tenho a boca seca de vida, de um abraço que me sinta, incorpóreo, sentido, estou despida, desenvolta das imagens construidas, das palavras compostas e dos dizeres fantasiosos, queria agua fresca de um ribeiro, queria fechar os olhos e calcorrear o caminho sem que as pedras me doessem, queria não me reconstruir todos os dias, ser sentida apenas.
Não sei se é tarde, se é cedo ainda. Não me sei perdoar pelo que de mim vendi, penso demais, sinto demais, olho em volta e os espaços são ocos, as palavras mal falam.
As palavras não saem.
Recolhida, na serenidade que me mata, nos valores que não desdigo.
Recolhida e perdida.
Estou tão cansada.
Estou tão errada.
Estou tão zangada comigo.

06 janeiro 2012

O tempo também é distancia

" O tempo também é distancia", disse-me de um soluço que o vento frio sustenta. Vejo-me ao largo, vejo-me ao longe num horizonte estranho, vejo-me aqui vestida de saudade e esquecimento. Ao meu lado a vida que me dá alento e uma corrente de imagens que correm no meu pensamento. Se me quedo ou desengano, se sinto  ou adormeço, doi-me o corpo se me vejo. Ver-me com olhos de dentro, que calo a toda a gente, dos gestos que mal me dizem, do cansaço que não sinto, deste pranto e contentamento. Vejo-me ausente se me vejo.
O tempo ofereceu-me a história que escrevo ano após ano, vista agora parece tão estranha. 
Um dia quis crer ser verdade que se lançasse uma fita quebrada ao mar, na sétima onda, ser-me-iam concedidos três desejos, um deles, doido, era repleto de ilusão, pensava eu, os outros eram apenas uma questão de gestos que não aprendi a orquestrar. Enquanto os acordes soam na minha mente, ainda agora não os conheço e porém, o mais distante, o mais sofrido, o que tantas vezes me fez desacreditar, cresceu em mim, feito de medo e de uma força maior que o meu corpo, deu-me um horizonte novo para alcançar, deu-me rumo e uma vontade tremenda de me ver. Já não sou dona de mim como julgava ser e, no entanto, tenho-me inteira, sem a sede de outrora de ser vista, ser amada ou sentida. Sede apenas de ser viva.
O tempo não muda nada, distancia-me, deixo o tempo lá atrás e metade de mim abala com ele em troca de um mundo de agora, de memória e esquecimento. O tempo não muda o que sinto, sinto o mesmo, a mesma sede, a mesma vontade ridicula de correr, o mesmo amor por qualquer coisa que não existe senão cá dentro, um amor assolapado que não me prende a nada, que me cala de medo que um dia o veja passar sem que o tenha vivido. Miséria a minha, sentada, atenta, o rio que passa, a foz que adivinho, a descrença que ainda seja agora o mesmo tempo, que o faça, que o sinta.
A intemporalidade reside nos passos que deixei marcados no caminho onde agora me vejo. Tenho vergonha de tantos, culpa por outros, tenho medo de me ter desviado numa altura do caminho e  me ter perdido, tenho a sensação que me encontro no que vejo agora, nos sentidos com que pinto a minha história que o tempo me ensina, me açoita, me grita cada erro e cada vitória, tenho uma história que não conto mas que sei quase de cor, vista de tantas formas.
Enquanto guardo um respirar tranquilo, lembro de momentos cheios de palavras que ficaram sem ser ditas, de tantas sem sentido, do grito que me chama e não me sai, lembro-me de tantas horas que enchem um tempo que agora parece pequeno, da história que é urgente saber contar, erguida da memória e deste tempo que me permitiu não esquecer.


10 dezembro 2011

Veste-me  névoa fria, reconfortante. Algures há aquele silencio que oferece vida, uma calma transparente, pequena, há uma moça sorridente que sonha sentir os lábios mais quentes, a tez ardente. Aqui, me tenho cansada de ser segura. Aqui me tenho lembrado de mim, vista de um vértice novo e inquietante. Vejo-me pouco, olho-me muito. Olho as histórias uma a uma, marcam agora a minha forma de as entender. Lembro-me do tanto que me ofereci em troca de quase nada, das marcas lavradas numa passada fugidia, apressada contra um tempo que sempre pareceu desconexo. Quis ser amada antes de tempo, quis dormir acordada, quis que os sonhos se fizessem dia com um estalar de dedos. Cheguei a já não querer nada. 
Respondi, estou desiludida. Não com nada, comigo. Não sei se gostaria de me conhecer de passagem. No fundo, sou boa pessoa, tenho um mar de sentidos em mim, orfãos, desirmanados entre si. Nada passa afinal, ficam as marcas, faltam as palavras quando desaguo a escrever. Falta-me um grito calado há demasiado tempo, falta-me esse sorriso gratuito que me seria devido. Perco-me num medo de já ser tarde quando sinto que ainda quase nada começou. E tenho este tanto cá dentro, em silencio.
Apetecia-me correr agora, só parar para gritar de vez em quando. Apetecia-me mergulhar em tudo o que sinto, beber cada trago, entender. Apetecia-me chorar muito, muito, até vir aquele soluço de alivio, e depois, deixar-me ser, sem medo, sem silencio, esquecida do medo e do tempo.


01 dezembro 2011

Há quem ainda chore sem saber bem porquê, que reflita na face molhada o que não sabe expressar, há quem ria ao mesmo tempo e se pergunte se assim se apazigua. Há quem se esconda nas palavras e quem nelas se confunda, há quem ria dos outros na penumbra do desconhecimento, há quem grite e quem se conforme. Há quem se auto analise sem duvida, há quem se cale e seja transparente, há quem minta de tanto que fala e há quem sinta que não tem nada a acrescentar, mesmo tendo. Há a melhor e a pior mãe do mundo, há o que mata e o que morre um pouco, todos os dias. Há o que muda e o que teme, há ainda o que lamenta o dia que pisou o caminho ameno. Há o velejador que já só se encanta com o horizonte, e a menina que sonha um dia se deixar voar. Há o triste e o contente. O que inveja e o que desmente. Há o intelectual que desdenha o tangivel e o que se preenche apenas com um dia. Há o que ama e o que já não acredita. Há o que critica porque sofre não ser e o iluminado que julga saber. Há o triste e o contente e, de ambos o que não sabe sentir. Há o confiante e o desconfiado, há quem, cheio de narcisismo, seja cego e quem, não sabendo, tanto conheça. 
Há os que julgam e desdenham, há os que cansam, perdidos de palavras encenadas para a audiência, há os que não ouvem e não se perguntam, há os que não existem, há os que vivem e os que passam, há os que ficam, por muito que aconteça. Há os que esquecem e os que lembram, há os que amam sem tempo e os que ocupam o tempo de presença sem mais nada. Há os de caras ferventes e os de quem ninguém se lembra. Há os encantadores de alma e os pedintes de afecto. Há os que se despem e os que se mostram, há as putas e as que compram, há os que pedem e os que se vendem, há quem troque e quem se ofereça, há quem beba e se esqueça, há quem se drogue e ainda sinta, há quem não faça nada. 
Há quem chore e se esconda, há quem cante mesmo quando sofre. Há quem procure e encontre, há que procure e não peça o fim da história, há quem já não se contente e quem não ouse crer em mais ainda. Há quem ria simplesmente. Há o sério e vazio, o preocupado e o doente. Há o demente cheio de vida. Há o louco e o temente. Há o que escreve e o dormente. Há tanto vazio...
Há o que ainda não se conhece e o que não se permite a pergunta.
Há o que chora, o que teme, há o que conhece.
Há o que ama e o que se arrepende.
Há o que ri e que chora.
Em cada um, estou eu.

21 novembro 2011

Fui agora lá fora, abri a porta e sentei-me num instante na soleira. Faz frio e a minha cara ainda ferve de vez de quando. Ao longe, misturam-se os sons da noite, compõem a memória que faz tanto caber num instante. Misturo as pedras que me erguem, as lágrimas que correm e me aquecem mais ainda, não estou triste, que sorrio. Sorrio do que conheço e saúdo, das palavras que me saem sem pensamento, das musicas que lembro e canto. Sorrio e tenho o coração apertado. Há pouco revisitei o meu pai, nas palavras com que cresci, num segundo, voltei a ser pequena e a olhar bem alto para o ver, de mãos dadas no passeio que sempre fazíamos, em noites assim, frias e quentes dentro de mim. Sentado como eu, escrevia num sopro de saudade e medo, imagino que no fundo chorava uma perda adivinhada, confundida com a mesma rua onde já ninguém passa e pára, onde já ninguém assoma para dizer "bom dia". Meu pai grande que fala, dizendo sempre o contrario do que lhe vai na alma. Pequena como me sinto ainda, quis dar-lhe um abraço com toda a força que tenho, com o que também eu sinto e mal falo, com outra saudade dessas mãos grandes que me seguravam e o mundo parecia um lugar encantado. 
Em pensamento, enchi essa rua das musicas que a avó cantava, do semblante pasmacento do "ti Diogo", da nossa algazarra, das brincadeiras, do cheiro, das caras risonhas que enchiam as conversas às portas, das filhas que esperavam vê-lo surgir lá em cima na curva a seguir ao campo da bola. Imaginei uma lua cheia por cima e a promessa que nada passa, nada acaba, sentado na rua agora cheia, não estarás nunca só, nunca pai,.
Agora, enquanto a minha pequenina dorme e tudo parece calmo, parei um instante, aspirei fundo e não me apetece dormir, quero lembrar-me do tanto que se fez em mim de ti. Lembrar-me dessa velhinha que embalas sem uma palavra. 
Amo-te muito pai!