10 dezembro 2011

Veste-me  névoa fria, reconfortante. Algures há aquele silencio que oferece vida, uma calma transparente, pequena, há uma moça sorridente que sonha sentir os lábios mais quentes, a tez ardente. Aqui, me tenho cansada de ser segura. Aqui me tenho lembrado de mim, vista de um vértice novo e inquietante. Vejo-me pouco, olho-me muito. Olho as histórias uma a uma, marcam agora a minha forma de as entender. Lembro-me do tanto que me ofereci em troca de quase nada, das marcas lavradas numa passada fugidia, apressada contra um tempo que sempre pareceu desconexo. Quis ser amada antes de tempo, quis dormir acordada, quis que os sonhos se fizessem dia com um estalar de dedos. Cheguei a já não querer nada. 
Respondi, estou desiludida. Não com nada, comigo. Não sei se gostaria de me conhecer de passagem. No fundo, sou boa pessoa, tenho um mar de sentidos em mim, orfãos, desirmanados entre si. Nada passa afinal, ficam as marcas, faltam as palavras quando desaguo a escrever. Falta-me um grito calado há demasiado tempo, falta-me esse sorriso gratuito que me seria devido. Perco-me num medo de já ser tarde quando sinto que ainda quase nada começou. E tenho este tanto cá dentro, em silencio.
Apetecia-me correr agora, só parar para gritar de vez em quando. Apetecia-me mergulhar em tudo o que sinto, beber cada trago, entender. Apetecia-me chorar muito, muito, até vir aquele soluço de alivio, e depois, deixar-me ser, sem medo, sem silencio, esquecida do medo e do tempo.


01 dezembro 2011

Há quem ainda chore sem saber bem porquê, que reflita na face molhada o que não sabe expressar, há quem ria ao mesmo tempo e se pergunte se assim se apazigua. Há quem se esconda nas palavras e quem nelas se confunda, há quem ria dos outros na penumbra do desconhecimento, há quem grite e quem se conforme. Há quem se auto analise sem duvida, há quem se cale e seja transparente, há quem minta de tanto que fala e há quem sinta que não tem nada a acrescentar, mesmo tendo. Há a melhor e a pior mãe do mundo, há o que mata e o que morre um pouco, todos os dias. Há o que muda e o que teme, há ainda o que lamenta o dia que pisou o caminho ameno. Há o velejador que já só se encanta com o horizonte, e a menina que sonha um dia se deixar voar. Há o triste e o contente. O que inveja e o que desmente. Há o intelectual que desdenha o tangivel e o que se preenche apenas com um dia. Há o que ama e o que já não acredita. Há o que critica porque sofre não ser e o iluminado que julga saber. Há o triste e o contente e, de ambos o que não sabe sentir. Há o confiante e o desconfiado, há quem, cheio de narcisismo, seja cego e quem, não sabendo, tanto conheça. 
Há os que julgam e desdenham, há os que cansam, perdidos de palavras encenadas para a audiência, há os que não ouvem e não se perguntam, há os que não existem, há os que vivem e os que passam, há os que ficam, por muito que aconteça. Há os que esquecem e os que lembram, há os que amam sem tempo e os que ocupam o tempo de presença sem mais nada. Há os de caras ferventes e os de quem ninguém se lembra. Há os encantadores de alma e os pedintes de afecto. Há os que se despem e os que se mostram, há as putas e as que compram, há os que pedem e os que se vendem, há quem troque e quem se ofereça, há quem beba e se esqueça, há quem se drogue e ainda sinta, há quem não faça nada. 
Há quem chore e se esconda, há quem cante mesmo quando sofre. Há quem procure e encontre, há que procure e não peça o fim da história, há quem já não se contente e quem não ouse crer em mais ainda. Há quem ria simplesmente. Há o sério e vazio, o preocupado e o doente. Há o demente cheio de vida. Há o louco e o temente. Há o que escreve e o dormente. Há tanto vazio...
Há o que ainda não se conhece e o que não se permite a pergunta.
Há o que chora, o que teme, há o que conhece.
Há o que ama e o que se arrepende.
Há o que ri e que chora.
Em cada um, estou eu.

21 novembro 2011

Fui agora lá fora, abri a porta e sentei-me num instante na soleira. Faz frio e a minha cara ainda ferve de vez de quando. Ao longe, misturam-se os sons da noite, compõem a memória que faz tanto caber num instante. Misturo as pedras que me erguem, as lágrimas que correm e me aquecem mais ainda, não estou triste, que sorrio. Sorrio do que conheço e saúdo, das palavras que me saem sem pensamento, das musicas que lembro e canto. Sorrio e tenho o coração apertado. Há pouco revisitei o meu pai, nas palavras com que cresci, num segundo, voltei a ser pequena e a olhar bem alto para o ver, de mãos dadas no passeio que sempre fazíamos, em noites assim, frias e quentes dentro de mim. Sentado como eu, escrevia num sopro de saudade e medo, imagino que no fundo chorava uma perda adivinhada, confundida com a mesma rua onde já ninguém passa e pára, onde já ninguém assoma para dizer "bom dia". Meu pai grande que fala, dizendo sempre o contrario do que lhe vai na alma. Pequena como me sinto ainda, quis dar-lhe um abraço com toda a força que tenho, com o que também eu sinto e mal falo, com outra saudade dessas mãos grandes que me seguravam e o mundo parecia um lugar encantado. 
Em pensamento, enchi essa rua das musicas que a avó cantava, do semblante pasmacento do "ti Diogo", da nossa algazarra, das brincadeiras, do cheiro, das caras risonhas que enchiam as conversas às portas, das filhas que esperavam vê-lo surgir lá em cima na curva a seguir ao campo da bola. Imaginei uma lua cheia por cima e a promessa que nada passa, nada acaba, sentado na rua agora cheia, não estarás nunca só, nunca pai,.
Agora, enquanto a minha pequenina dorme e tudo parece calmo, parei um instante, aspirei fundo e não me apetece dormir, quero lembrar-me do tanto que se fez em mim de ti. Lembrar-me dessa velhinha que embalas sem uma palavra. 
Amo-te muito pai!

11 outubro 2011

Palavras.
Faladas, são respiração da alma, são cansaço, alegria, são abraço e empatia, se o mesmo timbre, dita o compasso que as separa, como um suspiro, no laço que se cria. Palavras são embaraço, são a vergonha de não ditas, telas coloridas, caladas de tantas silabas que nada dizem.
Escritas, demoram mais tempo, guardam ideias em simultâneo, o toque dos dedos, os tons do lápis, guardam os olhos que as combinam.
Palavras não são nada, falam muito porquanto escondem, calam o que fica cá dentro, o que agonia, o que dá medo, mais tarde, hão-de ser um grito, soprado num instante, num momento em que a solidão nos diz tudo.
Já misturei mil palavras num pensamento, ficou emaranhado e sem sentido, já falei tanto em silencio, já ensaiei discursos, para mais tarde me esconder, já enchi paginas sem sentido. As palavras cansam, aliviam, choram por mim e sem eco, vou escrevendo, sentindo o que conto, o que calo, o que minto e sinto.
Palavras, palavras. 
Das histórias, não me lembro das conversas, lembro-me dos gestos, e os meus, nem sempre falaram de mim. Das conversas, ficou-me o tom e o ruborizar da minha face, ficou pensamento que mais tarde me voltava à mente, ficou mais o compasso que a orquestra de silabas inteligentes.  Sempre pensei haver palavras em falta, na minha escrita, no meu dizer, outras cansadas de tanto ditas na ânsia de as sentir. 
Embebedo-me de palavras, horas a fio, no que leio, no que ouço dizer.  Por vezes, julgo-me louca nos devaneios que me permito, no que vejo, no que sinto, forço-me uma normalidade dita em tom de conversa, aqui e ali, ensaiada. Cansada de palavras e da falta delas.

02 outubro 2011

Ergo os olhos e prometo que da próxima vez, dou-te as mãos e mostro-te caminhos que descobri, dou-te um pacotinho de lapis coloridos para desenhares os teus sonhos, de mãos dadas contigo sou uma mulher que conheço e destapo a cara para que vejas cada pedaço de mim.

O meu coração transborda só com o teu sorriso.
A manhã cheirava a um fim condizente, de cores quentes e musica que abraçava o rio em baixo. Na sombra, em cada banco, havia uma história que me entretive a ouvir, sem que de palavras se fizesse, é o reflexo em cada espelho, nas caras serenas, outras zangadas, onde sempre me revejo.
A manhã falava baixinho, havia guardado os cheiros porquanto os sentidos se enchessem de salva e alecrim, e respirasse este bairro antigo que fez tanto de mim. Aqui estudei um tempo, aqui me encontrei e perdi, experimentei saciar tanta sede sem receio, sem esta vida pesada de passado e presente, vim aqui tantas vezes, olhar a cidade onde cresci. 
Imaginei a mulher dobrada sobre um jornal amarelo, passando pelas horas bebidas de historias que lhe roubam a solidão, o homem ávido de agradar a cada rebento que o habita só nestes dias por obra de um qualquer fim. Imaginei-me a mim, perdida aqui, sem antes ou agora, só aqui. Com o mesmo brilho que não sai dos meus olhos, feito das memórias, dos instantes, porque não guardo muitas histórias, guardo os sentidos, a dor de estômago de calar a resposta, o calor da minha cara tocada, as mãos dadas que me valiam o sustento de um horizonte bizarro que não era só eu que via. Guardo as palavras enfeitadas, espelhadas do que não se dizia, "os meus trapinhos" coloridos, aquecidos de nostalgia, nem sei de quê.
Precisei de tempo, para ver o que não via, mesmo sabendo. Precisei de crer que a honestidade me salvaria, que as vozes concordantes me devolveriam; precisei de me zangar comigo, de gritar alto e de tempo para me desiludir e trair, de tempo para desacreditar e amar um momento, e mais tempo ainda para me sentar aqui, num mesmo banco com cheiro a madrugada e deitar uma lágrima, por nada ser assim.
Sou a mulher do jornal amarelo, transparente a quem passa, fugidia de mim, mesmo sabendo, desconfio da minha capa, conheço a cara tapada cujos olhos ainda sonham e choram por nada, porque ainda sinto e não passa. Este tempo, deu-me o maior sonho escondido, deu-me vida e matou-me um pedaço por dentro. Agora, contar-me a história que vejo, seria baixinho para só eu ouvir.


22 setembro 2011

Sentida de uma lágrima que aprendi a conter, se um sorriso é preciso no teu despertar, triste, tão triste pelas coisas pequenas do meu mundo, se é ele feito pela soma de cada uma. Sentida por  cada decisão e hesitação, tornados agora caminhos onde mal me vejo. Esbracejo e soluço em silencio e conto na minha memória se cada segundo não foram antes horas que me quedei sem me ter. 
Triste por deixar que o que sinto me tome, triste por cada passo pesar, sorrio porém agora, porque nada disto importa, nada, o teu sorriso é mais que tudo.
Foi só um dia, só mais um.
Nada importa, nada mesmo, sinto tanto agora, sinto-me capaz de tudo, houve um segundo em que as tuas mãos pequeninas despertaram a percepção da minha essencia. Talvez por ser novo, talvez por já não ser o centro do enredo, nada mais importa, apenas tu, minha pequenina.
Foi só um dia, cheio de ti.
Foi só um dia cheio do meu verdadeiro mundo.


20 setembro 2011

Esta manhã, trouxe-me cheiros que outrora vazios, me despertaram memórias. Lembrei-me da casa que oferecia um sorriso raro à minha avó, na azafama da vida. Vida acompanhada e desmultiplicada de ornamentos, vida simples de pensamento, vida suada nas terras e chorada sem que poucos vissem. Lembrei-me dos passos firmes que me ensinava, da voz mansinha com medo que se ouvisse. Aquela casa na esquina era um sonho por demais distante, se a sua fora roubada nos gritos levianos que apregoavam liberdade. Alentejana perdida numa cidade que a acolhia roubando a verdade e ousadia. Para trás ficara uma vida, deixada caida no terreiro do monte, de fugida. Lembrei-me de não ser tão complicada, de cabeça caida no seu colo, e de me sentir capaz de abraçar qualquer mundo. Lembro-me de tanto, tão pequena...
.... Do que me prometia e cumpria, de roer as unhas até fazer sangue, antes de cerrar os dentes e aceitar ser capaz, das conversas que tinha comigo, quando tudo me assustava. 
Esta manhã, devolveu-me a minha companhia, ser inteira por um bocadinho, sem mais nada, sem a saudade que me tenho, sem a falta da metade que deixei perdida no caminho. 

Talvez por entender agora que há um amor inteiro e infinito, pelo soluço que engulo tantas vezes nestes dias, talvez por encenar tanto este sorriso, mesmo quando o sinto, lembrei-me que ainda acredito, que ainda sonho ser inteira e abraçar o mundo que via. Há uma luz que me guia agora, que ofusca a ilusão e o medo de me perder. Estou meia, cansada, cansada, rendida. Não me encontro onde me quedei, não me vejo quando me olho, não digo o que sei e preciso de mim como nunca precisei. 
Talvez por agora ter pousado no meu colo um rosto que é tão mais que apenas eu, preciso de lhe oferecer uma voz mansinha que almeje a mesma luz e outro sonho, ainda mais bonito, que o meu afago se estenda ao mundo e, se as palavras não me chegaram, tem que chegar um momento em que o abraço seja mais que um laço, seja a sede de ser capaz. 

Este palco, que percorri de canto a canto, onde encenei cada embaraço, falei tudo menos do que sinto, este cais onde aceno e chamo, este traço esbatido no meu caminho. Cansaço. Passei tanto. Chega. Preciso abraçar  este mundo.

20 agosto 2011

Trovejará onde estou? Aspiro aquele cheiro molhado do feno, tenho saudades da cara lavada sem sabor a sal, a terra moldada debaixo dos pés, pegadas de acaso, quando não sei onde vou. 
O entardecer quente e cinzento, ofereceu-me um sorriso. Quem dera ser guiada pelas ruelas da cidade, poder misturar as palavras falando do mesmo, sentar-me no chão em silencio e ouvir a musicalidade do devir desse momento. Quem me dera saber pintar o que sinto. Guiei-me a mim, sem destino, esquecida dos minutos que passara numa maquina cavernosa, ruidosa que auscultava o meu cérebro. Estou intacta... Afinal o turbilhão é o meu, revigorada numas imagens de mim por dentro. Achei bonito.
Habituei-me aos acasos que a vida me oferta. Julgava dominar cada minuto, julgava não ser verdade poder morrer num segundo. Aspiro as lembranças de mim contadas por quem me ouviu, soube agora que resisti. Sou eu, por inteiro, somada, acrescento de um ensinamento que apreendo devagar.
Na mesma parcela de tempo, perdida numa ruela qualquer, ponho tudo em causa. Tenho pressa mas quedo-me ali. Quem me dera ser guiada, só por um bocadinho...
Mostro-me forte e segura, os meus passos tendem em trair-me nos compassos hesitantes do caminho. Não sou assim, tenho medo que seja tarde para tudo. Medo de quê? Já não sei se quero um cais seguro abrigado do desvario, já não sei se me magoa o que vejo e não digo, já não quero ser tudo, já não quero andar mais depressa, queria ver o mundo que os meus olhos pedem. Queria um livro que falasse comigo.
Encontro pessoas novas, escuto tudo, estou tão cansada de frases feitas e caras tapadas, sempre as mesmas, retidas como eu num ser onde se mora de vez em quando. Vejo o meu orgulho espelhado, a minha hesitação. Ouço o meu coração como nunca ousei ouvir, bate forte, tantas vezes. Outras, apetece-me esquecer, fazer por um instante o que a minha alma pede, o que me apetece, despir-me de mim.
O meu coração bate mais forte agora, apertado, nunca senti assim. Apertado como o mundo que seguro no olhar para oferecer. As palavras que guardo, os sitios e a simplicidade que prometo. Já não quero ter muito, quero ver, quero aprender com isto tudo, um abraço sentido e um horizonte como o meu.
Sobrevivi, já não vejo como vi.

19 agosto 2011

Devia ser uma menina bem comportada, como sempre me disse aquela velhinha de cabelo como a lua que avisto agora. E eu, sempre me apeteceu dizer-lhe que ao ser assim, perderia o que julgava ser encanto, porquanto me veriam sem as mascaras com que me vestia. Cresci na ambiguidade de saber mais que isso e, mesmo assim não ousar ser. Perdi-me nos abraços vazios que me despiram mais que aqueceram, nas palavras desbocadas e sem sentido que os meus olhos pediam, pedi emprestadas dez vidas, ou mais que isso, sem mais nada, sem calma, queria ser amada, sem saber que tal seria. Mesmo assim, hoje sentei-me à beira daquela porta  que teima em não morar na minha memória, reli as linhas que falavam de mim nesses dias; fumei um cigarro e, como sempre distrai-me a ouvir as conversas que me ladeavam. É mais facil do que sentir.
Entrei na hora certa, mudei, cheguei a pensar que chegar a horas era sinal de ansiedade, mas as minhas horas são outras agora e a minha verdade descontinua-se no rol de ilusões a que me assisto. Chegar a horas é o respeito que devo, assim como o abraço genuino com que fui recebida. Aquela senhora conheceu-me noutras horas, horas de breu e de um caminho que hoje me assusta ao ponto de não querer pensar.
Constrangida, emocionada pelos rostos que guardo e a quem devo a vida, entrei na sala em direcção ao abraço quente, indefesa, grata e pequena. Pequena perante esta vida de acasos com sentido, pequena na emoção que me acompanha e aperta o coração, grata por esquecer e poder viver, indefesa na verdade que me ofusca e envergonha. 
Ouço e leio frases estanques, adjectivadas de pronomes e imagens, metáforas da vontade e inverdade, eu não sei quem sou, não sei o que fazer com o que sinto e o que penso, sei agradecer estar aqui. Não sei ser simples no turbilhão que vive em mim, não sei se me devolvi os pedaços que ofereci a troco de nada, não sei se paguei o que roubei a quem se despiu perante mim, nas minhas  imagens moldadas, sempre me desiludi. Não sei se fui amada, se quis crer que sim, sou hoje o passado que guardo em mim. 
Sei as lagrimas que solto na incompreensão. Sei o silencio onde me guardo e este abraço. Sei o medo da descrição, de um conto meu a que não assisti, e o meu sopro de vida é assim, um respirar finito, compassado no meu sentir. 
A dadiva da minha vida é tão mais que eu... " que parva que eu sou..."

15 agosto 2011

Lethes

Gravado no granito majestoso que sempre me fascinou, li dizer a lenda que ali existia a fronteira entre o mundo dos vivos e dos mortos, que o Lethes transposto, oferecia o esquecimento ao qual me apego na duvida se seria a dádiva, vida ou morte. Esquecer é renascer ou antes morrer de um pouco de mim?
A distancia temporal dá-me vida e clareza, na culpa, na vergonha de ser pequena e mesmo assim, ouso não querer esquecer, morrer ou reviver mais ainda. A distancia da minha janela que amanhece todos os dias, tal como eu, clama vida, e neste rio, renasci, como aprendi em cada viagem, em querer saber, e morrer assim, ou renascer.
E o cheiros que vivi? O cheiro fresco dos poejos abraçados à corrente, desfocada da algazarra festeira e da romaria, perdi-me nas lendas e no alcance, nas pedras magnificas esculpidas de historia e revivi ser eu ainda apaixonada por ideais erguidos em mim, feitos de imagens e sonho, irreais de tão sentidos.
Preciso tanto destes momentos, de desordenar o caos que me ordena e sufoca, de ver cores e ouvir gentes perder-me de olhar e sorrisos quentes, sentir a chuva na pele quente de cansaço, e de repente morrer um instante, para nascer em mim. 
Esquecer é tanto morrer como perder a herança que me fez assim. Por isso, sem hesitar, atravessei o Lethes para me lembrar, sempre.

02 agosto 2011

Passaram 10 anos de um dia que se fez, de mansinho, noite escura, madrugada e amanhecer. Povoada de noites escuras e claras de não dormir, de sonhos cristalinos, de medos e vergonhas, de uma culpa e de uma verdade dificil por doer. Passaram dias opostos à sucessão de ruelas cinzentas onde me perdi, da embriaguês que me seduz, da metáfora alucinada na qual quis crer. Não me sinto diferente agora, revejo-me nas mesmas horas, prevejo a voz que me chama, que me atordoa. Ancorei-me por temer um mar onde me perderia de vez, calei-me de um grito só meu que ecoa em baforadas estrondosas, vezes demais. Sou livre agora, não sei.
Não sei o que significa tanta coisa.
Tenho sede de saber, de ouvir, mais que palavras, os sons que me tocam por dentro e são tão poucos. Da mentira, retive ser capaz de exponenciar a minha essência, da vergonha, o medo de me mostrar no reflexo espelhado que teimo em esconder. Da culpa, calei a minha arrogância em ser maior, sou pequena no que me devo, no perdão que peço ao amor verdadeiro que me deu vida, tantas vezes foi preciso.
Tenho mais medo. Tenho medo do que vejo e aprendi, tenho medo do que penso e não digo, escrevo em mim, num canto cá dentro que me dá vida. 
Não sei o que é ser feliz, não consigo, baila em mim um turbilhão de dias cinzentos pintalgados de sorrisos por nenhum motivo. Às vezes sinto-me sozinha outras, agradeço poder escolher. Não sinto como devia, penso.
As mais duras guerras são comigo.

Tenho saudades do meu amigo.

19 julho 2011

Enquanto vasculhava na mochila em busca do que já sabia não encontrar, de cara a ferver, de raiva e vergonha, de uma mistura de memória e desconhecimento presentes, pensava que esta cidade me é estranha no seu embaraço. Tornou-se fria dos cheiros de outrora, frenética nos passos e nas horas, sentida de uma moléstia que aqui mora, perdida, sofrida. Já calcorreei o mesmo caminho, já me despi da vergonha que hoje sinto. Que sinto agora, sinto de mim e do que me assola. 
Chegara cedo, tinha tempo, tinha um compasso só para mim, para passos saboreados nestas ruelas com cheiro a sardinhas e a conversas nas janelas. Os sentidos invadiram-me de uma nostalgia sempre nova. Saudade das varinas e da gritaria matinal, das lides e vozes nas ruas, de noites terminadas em madrugadas enfeitadas de conversas à beira rio, de espreitar nas portas e adivinhar as vidas que lá dentro se viveriam. Saudades de uma parte de mim. 
Procuro nesta cidade, o que esqueci. Por isso me encontro, de olhos perdidos, aqui e ali, vou sorrindo enfim às caras que me olham, e eu a elas, silenciosas no que escondem e se vê. Lembro-me de pensar que tinha fome, fome de iscas e de chouriço assado, qualquer coisa assim. Parada num quiosque que outrora seria preferencialmente alusivo a Lisboa nas telas em voga, não agora, agora é uma barraca de ferro descartavel e desdobravel, com um casal brasileiro atrás da amalgama de revistas com as mesmas capas e as mesmas "descobertas". Olho a mochila, olho em volta e não a vejo. Não me lembro.
Pergunto, corro, faço o caminho de volta e tremo, o meu cerebro vazio não me responde. Fui roubada naquela rua? Onde? 
Fui, nalgum sitio.
Recuperada a carteira de uma casa de banho imunda, despida até da mais insignificante moedinha, quase visualizo o frenesim e a alegria de quem quer que seja, antecipo a ida e vinda, o desnorteio, a pedra com cheiro de podre, a face baça de anseio sem sentido,  vem-me o cheiro à boca e tenho vergonha deste silencio que me rodeia, desta solidão subita, de um medo de onde venho e para onde caminho. 
Cidade triste, cheia de pressa que nem sente que morre aos poucos, nas caras tristes nas janelas, em silencio, nas lojas asiaticas onde antes moravam tasquinhas, nas vozes roucas, sem sorrisos, na doença disfarçada.
Tenho este sabor ainda na boca, de não reconhecer o caminho

16 julho 2011

Tenho este momento só meu, todos os dias, mesmo que seja tarde e esteja cansada.
Há 10 anos atrás, baixava os braços sem noção da urgencia, sem força. Há muito que não ousava enfrentar-me, trocar uma palavra comigo. Há 10 anos, o tempo ultrapassara-me numa busca frenetica de ver o mundo girar ao contrário. Na minha ilusão, a lucidez doia demais e a vida cegava-me, ou senão, ofuscava-me de cegueira.
Hoje pensei que me doi ver, olhar para trás e já não ter o dom de me cegar. Entretenho-me numa arrogância experimentada, defesa minha solitária. Já não me apetece ofuscar-me sequer, de altivez ou convicção.
Não sei se sou boa pessoa, não sei se a meio do caminho me orgulho ou castigo. Tenho numa pequenês o meu orgulho sofrido, tenho no medo o meu sentido e na coragem, os momentos mais intimos comigo. Como li, envelheci depressa, voei sem asas e caminhei demais descalça. Mas estou aqui, viva.
Não me perdoo em convicções que não cabem  na minha alma, acho que ainda nem me descobri.
Sei do que seria capaz, por ti.
Sei que me sinto sozinha na grandiosidade deste mundo que aguarda, que a ironia me ensina. E hoje, senti-me bonita, cá dentro. E não é sempre assim.
Hoje, estendeste as tuas mãos pequeninas e tocaste a minha cara com um carinho que vou aprendendo ser tão maior, e em silencio, ensinas-me mais que alguma vez fui capaz de beber da vida que me rodeia. Decresço no gesto, bebo este sentir tão novo.
Vou sentar-me e ver-te dormir.

14 julho 2011

Cerro os dentes, e travo os sentidos contrários na minha mente. Gravo na pele a promessa de algo divino que me acorreu.  Continuo surpresa com o poder que me assiste, desconexa na opinião. Onde encontro o equilibrio da razão e do sentimento?
Dorida na pele e no instinto, lembro-me que mais tarde, verei o sentido. Lembro-me de uma musica que me acompanha, Pangea, e que me traz a mais nobre lição, de que nada se empreende contraria ao movimento do mundo, só assim percebo o destino e o meu acaso. Só assim aceito que o mundo se abre quando eu não busco, nem domino. 
Aspiro e adivinho, sem sentido, o poder da minha mente, perante a dor e a alegria, perante a minha pequenês, outrora rebeldia e altivez. O mundo gira nesta direccção, dita uma voz que não ouso ler. Não creio em Deus, mas sou crente. Não controlo mas nem aceito. No dia em que me detiver, morrerei por falta de rumo.
Por uma vez na vida, não sigo, caminho.

10 julho 2011

Hoje partilhei contigo a mescla de cores que estes dias oferecem, os teus olhos claros brilhavam numa direcção que não sabia antecipar. Houve um instante pequeno que me apeteceu correr muito, expirar este fôlego contido que insiste em não sair.
Às vezes, esta claridade ofusca. Sabendo, canso-me de mim. Canso-me de pensar, de julgar. Sou minha inimiga em tantas horas, e se antes desmoronada e calada, atrevo-me a ajoelhar-me e a pegar em cada pedaço meu espalhado. Não sei se cresci...Não encontro o principio e as ideias são vagas soltas de um levante cinzento e demasiado claro para não o ver. 
Desconcerta-me a linearidade das frases e dos conceitos, se em mim, tudo existe numa devida e prometida desordem. A meio da vida, não sei demasiadas coisas e sei outras que julgava poder esquecer. Guardo-me em instantes desconexos. Como agora.
Na calçada passeiam-se casais de mão dada e eu penso, na viagem que me falta fazer, nos gestos mecanicos que facilitam o embaraço, na castração dos impetos, penso no ser pequeno que abraço e no sorriso que me descansa e acalenta. Penso nos fins de tarde numa mesa maior ainda, com este mar defronte e um prato de conquilhas. Penso nas parvoices minhas, são minhas por serem assim.

Dia de calmaria lá fora, de sorrisos e abraços. abraços de que senti tanta falta e, cá dentro esta voz que se cala, de teorias e conceitos, por ser urgente beber a vida.

24 junho 2011

Não sei descrever as cores que vejo, mudam combinadas com o sol que as conhece, searas dançantes, douradas. Embriagada deste entardecer sereno, no cume de uma serra que me descobre, em cada pensamento que agora deixo que me venha, como de vez em quando, quando choro e sorrio em simultâneo.
"Não és tu, nem tanto, na verdade", que esta consciência tanto me atordoa como entontece, conheço tantas palavras, e não expresso o que me vai na alma, não consigo. Converso comigo em segredo, agradeço ter morrido e renascido, tantas as vezes que me reconheço, e só assim me existo, em mim, na quietude que habita neste sitio.
Penso no meu pai, que mais do que passos, deu-me sede de caminhar, deu-me esta paz deste lugar onde nas sombras veria o medo e vejo apenas esta calma, este vento e o bailado das cores deste Alentejo.Tenho sentido o carinho genuino dos homens de mãos duras que me viram chegar tantas vezes alienada de convicções sem sentido, desta terra quente e da pedra ardente de que nunca me canso. Hoje, não tenho pressa, bebo as feições sinceras, respondo, faço parte, conto e ouço as histórias.
Aqui não espero a resposta, lembrei-me de cada um que me moldou, de cada memória, um sitio, se o que vejo é tão somente a minha cegueira mais clara ou a simples percepção de uma história que, sendo a minha, nem sempre vivi. 
Tudo mudou, no palco, ensaio o caminho que preciso preparar, já não protagonizo, um dia de cada vez, amo tanto que chega a doer, este ser pequenino que me olha como nunca nada nem ninguém me olhou. Sinto-me capaz de mudar o mundo para lho oferecer, a guerra e a paz, o medo e o desnorteio e a mesma sede de querer andar, mesmo que um dia, sentada neste lugar, sinta o mesmo, que não se deu por inteiro, mas pequena, veja as cores como eu vejo e continue a caminhar.
Hoje chorei muito, chorei e ri. Agradeci.

20 maio 2011

Reli-me, visitei-me nas palavras dispersas que expiro. Já não escrevia há algum tempo. Tenho lido, às vezes, sento-me comigo e rabisco expressões por alivio, comigo, pareço ter perdido a respiração. O meu reflexo fica mais claro de dia para dia, a doce ilusão já não me presenteia, as ideias explodem na minha mente numa desordem mais dura e mais clara. Sinto-me e saúdo-me.
Ganhei ou perdi na tela  em que me inspirei, conheci o sabor de amar mais que sabia, percebi a dimensão de um olhar, a sabedoria do silencio, o alcance das minhas mãos. Fui inteira sem guerra ou calmaria, deixei-me saborear momentos feitos de mim e do tanto que me havia. Falei-me baixinho e acreditei que podia, podia tudo, até sonhar. Podia falar alto, gritar por mim adentro, despir-me desta pele que me queima e atordoa, sussurrar o que me ilumina e amargura. Acreditei que na desordem me tinha, que existia nos olhos que me viam. Eu sabia que ver era mais que olhar, sabia que escrever era, antes de mais, respirar o que a face escondia, sabia que transbordava de ideias sem concepção, sem credo nem sequer medo. Não sabia acerca do tempo e do efeito que tivera em mim, não sabia que as palavras eram apenas o principio e que os gestos eram os passos que pisara sem dar por isso. 
Contei-me tantas verdades que eram mentira, disse-me guerreira e era presa, sonhava tanto, e nem sabia, perdi a voz das palavras, o alcance do silencio. Ofuscada das passadas, das ruelas cinzentas que ainda hoje me atraem, dos cumes e das terras com que pintei o pensamento, das amarras do discernimento e das ancoras ferrujentas e bravias que magoam tanto, tanto. E contei-me ser afinal fraca e fugidia....
O meu reflexo fica mais claro de dia para dia.
Sou grande por ser pequena, tenho esta ferida que sangra e eu aprendi que doía, doía cá dentro. Doia mais ainda sentir a minha presença, descrente, ainda mais fugidia. 
Guardei-me num mar bravio e distante que visito para estar comigo. Ergui a cabeça à descrença numa tal doce ilusão. Não sei se existiu, não sei se foi.

Houve um tempo, em que me procurava e assim, o meu reflexo era a opacidade dos outros, os adjectivos e os contornos, levava-me o vento e qualquer sentimento. Fui obediente e arisca, fui clara e cega, fui carente de fantasia e sedenta de mil vidas numa, a minha. Fui bêbeda estando tão sóbria, perdi-me num horizonte, fui princesa de contos sem final feliz, fui cada lágrima que calei, lutei com todas as forças que tinha, fui foragida das historias em que não me via. Andei tanto até chegar aqui.
Ainda agora, olho em volta e não me revejo.
Esta manhã percorri a cidade que me fez crescer, que me acolhe agora. Precisava de me embebedar dos cheiros que me dão vida, andei devagar porque sempre corri, olhei para contornos e esquinas por onde passei sem sequer me deter, aspirei o rio, ignorei o cansaço da multidão onde me perco, preferi a vida em busca da restea de fantasia a que tenho direito.

Magoada de uma ferida que tarda em sarar. ofuscada pela realidade, tudo mudou agora. É tão claro que exala do meu silencio e das minhas palavras, sou mais que somente a minha estrada. Sou agora este sentido de vida reforçado, sou este sorriso tão calado e tão cheio, olho em mim o caminho, as pegadas, assustada por estar sozinha quando pela primeira vez, desde há tanto tempo, me sinto una, clara. Não gosto do que digo, mas respiro. Não gosto do que sinto, mas é verdade.

O meu reflexo fica mais claro.

20 março 2011



Estou aqui... Sentir-me cheia como esta Lua que hoje me encanta e encandeia. Soubesse eu escolher de entre as palavras que ainda não sei, as que gritassem cada sentido exaltado de mim. Os acasos dançam na minha mente, sublinham as perguntas que não ousei, reforçam as respostas que me dei, estranho olhar o meu, desfocado sobre estes dias que não senti. 
Soubesse eu arrumar cada pensamento ao lado de cada memória, soubesse eu a história que fica por contar. Esta vontade de gritar inteira, abraçar a lua que me despe em cada noite assim, cheia, esta sede de me entender e perdoar, de me abraçar na fé que cada passada poder ser a desordem que me dá calma, poder ser memória e  madrugada renovada num ser maior. Soubesse eu armar o meu castelo no cimo do caminho, onde o vento sopra bem forte e me fortalece cá dentro, onde ninguém me descobre, nem questão nem resposta, apenas a tela que pinto, o que sinto, o que sinto...

Há dias, procurei-me... As lágrimas escorriam-me pela cara, sentia um frio cá dentro, precisar de me lembrar que estive ali, tão distante, que me esqueci das caras de quem tratou de mim, quem chorou e me deu a mão, a cama onde volvi a mim. Tinha feito todas as perguntas, mal ouvi as respostas porque pareciam continuar a não falar de mim, aceitei sem expressão, a história que contam... "Foi muito grave"... Agradeci mas não sei, aceitei...
Nada me era estranho, o carinho familiar com que a senhora de branco me falou, como se já a tivesse visto em algum lugar, não sei qual, não importa, vou vê-la muitas mais vezes, vamos tratar de mim até ficar bem. Agradeci, parece que fiquei em boas mãos neste tempo que esqueci, mas e agora? Se eu preciso de entender, de me lembrar que foi mesmo grave.
Subi ao segundo andar e perguntei a um senhor se se lembrava de mim, ele riu, lembrava-se bem, indicou-me a direcção da sala onde estivera. Contei os passos nessa direcção, olhei a plaquinha azul numa porta "Cuidados Intensivos" e achei que devia estar enganada, nunca estivera naquela sala tão equipada para "casos graves". Segui, mas a porta abriu-se e uma cara risonha, estranha, chamou-me, quente, tão quente que me arrepiou. "não me lembro de si, desculpe, não me lembro de ter estado aqui". A voz quente, segurou-me a mão e conduziu-me lá dentro, e o silencio encheu-se de saudação, e fiquei rodeada de gente a falar de mim. Parece que deixei memória, menos em mim, que me portei mal, quis bater naquele senhor que teve que me amarrar, e dei parte da minha refeição a alguém , que tentei fugir sem saber, que tive conversas imensas com este e aquele e nem estava ali... O que se passou comigo? É tão estranho... Pedi desculpa, aceitei aquelas mãos e a alegria de estar "tão bem" e saí com as lágrimas cada vez mais duras a lavarem-me a cara, saí de braços caidos, sem a memória que preciso para entender o que me contam.
A S. teve um enfarte e uma paragem cardiorespiratória, esteve 30 minutos a ser reanimada, se não estivesse aqui, não teria sobrevivido, esteve dias sem se saber se iria acordar, se iria recuperar... E eu não me lembro de nada... Apetece-me gritar-me, abanar-me, agradecer, responder-me a todas as perguntas que me assolam. Mas fico assim, calada, faço as viagens necessárias a conversar comigo, a exercitar a memória, e não consigo.

Por isso, estou aqui, sinto-me cheia como esta Lua, esta vida renovada que se transforma, as arestas mais claras, as formas da minha história, o cais seguro a que me amparo nas noites de trovoada da minha memória, fico assim, lúcida e desnorteada, crente nas mãos quentes que me aquecem, nas palavras que me ofertam, na força da minha vontade e do meu corpo. Dizem que sou muito forte. Eu sei que sou... às vezes esqueço-me!

04 março 2011

Entre mim e o vento, há uma lágrima quente
que me acarinha a face molhada.
Esta névoa encantada em que me envolvo nos fins de tarde, tão clara que vislumbro cada despojo que o mar ainda abraça e eu penso se será ele o derradeiro criador de sonhos e verdades. E pergunto-me, "Que verdade, se eu mesma não me revejo nas palavras e porém os meus gestos despiam-me das amarras e eu, flamejada de vergonha olhava-te... Naqueles momentos em que te julgava distante e impenetravel e ousava quebrar a minha cara disfarçada. E pensava no meu tamanho ali despida, se era desejo ou revelação, se por um instante, o silencio dos teus olhos eram a palavra que me esqueci de aprender a ouvir. Se era a minha verdade guardada no  recanto mais empoeirado de mim.
Cada vaga parece-me um conto agora, não vislumbro ilhas ou enseadas, não consigo, vejo os despojos que desfalecem nos meus pés descalços e, no entanto, cada um se desenha harmoniosamente na praia, nos contrários dos elementos, como se criasse esta história. E eu, penso, "Que arrogância a minha, querer tomar conta dos verbos e dos gestos, se uma lágrima apenas diria do meu medo e do meu credo, da minha ancora e do meu recanto, se os meus olhos falavam da minha sede de ser, um momento, de crer ..."
E revejo o tempo, não a cronologia dos passos, vejo os espaços que me distanciam, a ironia com que estes pedaços se ajustam e me mostram que sem contornos, és parte de mim, de uma memória presente, nos caminhos que me trazem aqui, sempre.
Ainda me fascinam os fins de tarde. Ouvi que morri e renasci, e tudo passou tão longe. Não que queira saber assim de mim, não que a consciência me acrescente, apenas percebi o meu horizonte, que cada instante é do tamanho que nele me envolver. Conheço-me? Não sei...
Sei ver-me assim, fascinada com a ironia dos acasos, com as minhas mãos fechadas capazes de segurar o mundo, confundida com os sorrisos oferecidos, os abraços desabrigados, com estes estilhaços tão vivos que se acercam... Ainda ouço falar de mim sem me ver.
Vejo-me uma, duas, poucas vezes, num suspiro profundo que me não enche, na minha sede inconsciente de nudez em frente a ti, vejo-me nos contornos da minha mente despercebida de mim, lá no fundo onde ninguém habita, nos sorrisos soltos que fazem parte dos meus contornos. Não sei viver sem sorrir.
Apetecia-me esbofetear este tempo, este ocaso, este mar cinzento e imenso que me rasga por dentro e não me deixa dormir. Apetecia-me sorrir grata, pelo sentimento que me abarca, pela ausência presente, marcada cá dentro em silencio, antónimo da palavra já gasta de não ser capaz de me ver noutra cara. 
Apetecia-me falar desta vida crescida em mim...
E do tempo que me marca a cara e não passa.
Apetecia-me assim, não ser preciso a palavra.

03 março 2011

Mais alto

Mais alto, sim! mais alto, 
mais além do sonho, 
onde morar a dor da vida,
Até sair de mim! Ser a Perdida,
A que se não encontra! 
Aquela a quem o mundo não conhece por Alguém!

Ser orgulho, ser àguia na subida,
Até chegar a ser, entontecida,
Aquela que sonhou o meu desdém!
Mais alto, sim! Mais alto! A intangível!

Turris Ebúrnea erguida nos espaços,
À rutilante luz dum impossível!
Mais alto, sim! Mais alto! ode couber 
mal da vida dentro dos meus braços,
Dos meus divinos braços de Mulher!

Florbela Espanca

02 março 2011

Palavras minhas

Palavras que disseste e já não dizes, 
palavras como um sol que me queimava, 
olhos loucos de um vento que soprava 
em olhos que eram meus, e mais felizes. 

Palavras que disseste e que diziam 
segredos que eram lentas madrugadas, 
promessas imperfeitas, murmuradas 
enquanto os nossos beijos permitiam. 

Palavras que dizias, sem sentido, 
sem as quereres, mas só porque eram elas 
que traziam a calma das estrelas 
à noite que assomava ao meu ouvido... 

Palavras que não dizes, nem são tuas, 
que morreram, que em ti já não existem 
— que são minhas, só minhas, pois persistem 
na memória que arrasto pelas ruas. 

Pedro Tamen, in “Tábua das Matérias”

01 março 2011

Hoje subi a serra. Escolhi a encosta soalheira, onde habita aquele vento frio e cortante que nos assola a cara e desperta. Conheço o caminho no meu pensamento e, não sei porquê, hoje envolve-me a saudade. Por isso, desabrigo-me destas vestes adequadas e caminho nos meus sentidos. Esta serra já foi meu abrigo, minha seara de sonhos e minha foz de palavras. Tenho sede de palavras, não descritas e opacas, sinto falta das palavras que parecem suspiros, que nos saem da alma em torrente, porque mais do que o medo, há uma fome de ser por inteiro, de dar contorno aos cantos de nós, os mais recondidos e temidos e porém, os mais genuinos e precisos.
Tambem sinto falta do silencio, de olhos perdidos na planicie, aquele que diz tudo. Sinto falta de um momento uno.

Hoje pensei nas caminhadas interminaveis que fiz sozinha, e preferi-as assim, como de costume, habituei-me a atrapalhar-me de pessoas, a esvaziar os meus espaços do esforço de me integrar, aprendi acerca das roupas que gosto, da verdade desadequada, da minha sede de fuga que nunca soube explicar, e no entanto, em algum lugar, fui eu mesma a fechar as correntes, por medo ou pela simples percepção dos caminhos insanos que chamam, que cheiram, que me espelham mesmo assim. 
Do cimo desta serra, aspiro a minha verdade, as lagrimas que semeei aqui, a leveza, o abraço, o direito de, por um momento, não me pertencer só a mim. Tenho saudades do retorno no mesmo compasso, saudades de uma leveza na minha alma que agora ainda pesa tanto. Saudades da palavra cheia de uma verdade que não sabia existir. 

Por vezes preciso de me encontrar, de olhar o meu reflexo , de encontrar este lugar em que semeei o mais fundo de mim, sem saber da colheita, sem cuidar da semente, fruto de cada sentido liberto, cada grito de silencio que deixei aqui. Não sei crer ser mesmo assim, desaprendi a capacidade de me dar assim, tanto, invadem-me as historias repetidas, os contos esgotados a meio, a busca perdida por qualquer anseio, sem paragens, sem moradas, as gargalhadas que ouvi, a banalidade que moldei, a certeza que tal como agora, já não chegaria este aqui, este silencio estrondoso que ainda toma conta de mim.
Estaremos perdidos na sede, nos esgotares sucessivos, nos bocejos, no meu medo e meu descredito, neste compasso de tempo que parece sem fim? 
Hoje subi esta serra no meu pensamento para falar de mim, homenagear a saudade do silencio e do abraço, do tanto feito nada e deste hemisferio soalheiro de mim.

27 fevereiro 2011

Quem me dera saber mais de mim

Tão estranha esta minha  forma de pensar. Acordei mal o sol iluminou a minha cara por sobre os ramos nus que avisto da janela, conheço este despertar distante de mim, os segundos de demência para me situar neste tempo e lugar.
Quem me dera lembrar...
Da minha janela, não me avisto, leio repetidamente os intermináveis relatórios que parecem não falar de mim, dias seguidos, telas brancas na minha memória e, neste anseio, vou perguntando a quem me viu, se sabe por onde andei. Ouço histórias, tento visualizar os lugares, as pessoas com quem reparti este meu estar sem presença. Havia um rapaz de tez negra que me ajudava e brincava comigo, um homem de bata azul, haviam monitores e uma dor lancinante no meu peito que nunca entendi. Havia uma janela que mostrava Lisboa....
Acordei cedo, aspirei vida, as lágrimas corriam pela minha cara, sem reflexo, sem motivo, emoção pura de um tempo que passa por mim, desconexa vou conhecendo os meus limites, vou escrevendo no meu caderno porque mais tarde não me lembro, e surpresa, cada voz amiga me anuncia o quão forte sou, capaz de surpreender os doutores e eu, eu penso, mas eu não me lembro de mim...
Seria capaz de racionalizar cada momento, despedir-me do quanto me fez falta, agradecer a lembrança daquela velhota linda sentada na minha cama, do castelo de lembranças emprestadas, emocionadas com que preencho os dias, da presença ausente de uma madrugada que me trouxesse, uma vez que fosse, o que trago cá dentro e já não encontro.
Quem me dera não lembrar da minha essência..

Da minha janela, lembro a cidade que me confortou, do silencio que vesti por não ter palavras que me contassem, do medo paralisante, esta sensação que me domina agora... Peguei numa vassoura e, a meio da minha sala, parecia ter cavado uma lavoura.... Estou cansada, rio por nada, choro, apregoo calma, tenho a minha alma revolta, tenho medo e sou incapaz de me encostar num colo e descansar. Ouço vozes em meu redor, um mar de carinho que me espanta.... 
Quem me dera poder mais de mim...

Estive longe, o meu coração parou quantas vezes precisou e, parece que o respeitei por isso, fui com ele e quando voltei, não sabia de mim. Estou aqui... 
E neste cantinho, aqui ao meu lado, há tanto de mim...



Volto à minha janela e, simultaneamente há uma maré que me transborda, sou forte, sou a soma do caminho que tracei até aqui. Se contar a minha história, rasgada da capa que me encandeia, falarei bem e mal de mim, falarei do que sei, do que sinto, de cada rosto presente, e  ausente, de cada amigo, falarei do medo extinto e mais outro, premente, da unica maré cheia que deixei vazar, falarei do mar, das pegadas que a minha mente não se esqueceu de guardar, se o fizer, falo de mim, dos contornos que me habitam, da antitese, da metafora, falarei mais alto que a minha mente. Sinto falta de falar de mim.


Vem vindo o fresco da noite, molho a cara e retenho no meu caderno... Sou forte, sou pequena, menina mal comportada que mal soube tomar conta de si.

23 fevereiro 2011

"Corpo, meu velho companheiro, nós pereceremos juntos.
Como não te amar, forma a quem me assemelho,
se é nos teus braços que abarco o universo."

Marguerite Yourcenar

E sem perecer por enquanto, esta forma que me embala, este corpo que eu anseio
é permeio, é abraço, é mais que o mundo que vejo

Milhita

21 fevereiro 2011

Insanidade


Estou neste quarto , num hospital que não reconheço, reina um silencio em mim que ecoa mais alto que um burburinho distante e maldizente de duas batas brancas sentadas à minha frente. Danço num rodopiar vazio na minha mente.
Estou aqui, onde as horas se misturam, e eu tento dar-lhes forma. Disseram-me  algures , não sei se agora, que o meu coração parou. Como? se nunca deixei de o sentir? Parou de cansaço. Parou para me dizer que também ele me sente, e eu, não senti nada, não vi luzes, não levitei sobre mim, dizem que durante dias fui o que o meu inconsciente ditou. 
Ouvi , parece que gritei com toda a gente, parece que deixei livre um  lado de mim que sempre me fez tanta falta, desta capa que detesto do medo do meu reflexo.

Enquanto escrevo, olho para o lado onde a D. Elvira explica que tem que se despachar para ir ao mercado e apanhar o autocarro, a uma enfermeira que amavelmente respeita este lado inconsciente que grita, como eu. como eu... Parece que a D Elvira tem um filho mas já não se lembra, apenas porque nos passos marcados da sua memoria, ele não existe. 

Volto a mim, preciso de falar, como não sei ainda desta forma, pedi um pedaço de papel e começo a escrever, sinto-me cheia de um vazio de palavras, de respostas, de perguntas, de falta das noites iluminadas de pensamentos desgarrados e palavras ao acaso numa madrugada qualquer. Não, não era uma qualquer, era escolhida pelo contornos do luar, pelos rasgos de fogo, pelo mero acaso de precisar de respirar, os sons, os cheiros.... Meu Deus, como guardo os cheiros, nesta livre insanidade de me expressar, as pedras salgadas, aquele farol abraçado apenas porque as mãos sempre foram mais verdadeiras que eu.
Sou livre agora, o meu coração parou e as faces estranhas condescendem porque mais uma vez, nego os quadros negros de mim. Sou livre porque estou aqui e não sei sequer de mim.
Sou livre da historia que o mar insistiu em não levar, esculpida em cada rocha, sei que lá deixei a descoberta de mim. Lembro-me de um sol gravado em resposta aos pedaços que me arrancava por já não serem só meus.

Falo alto que o Sr Martinho tornou-se apenas na antítese do meu sonho, velho anedótico e patético, igual a esta demência tão sana que não deixo que tome conta de mim. E ouço-me baixinho que já não preciso desta mascara, porque a única vez que me quis dar-te, já havias tomado conta de mim.

Que saborosa esta insanidade tornada liberdade, num molhinho de dias, senti que perco tudo aquilo que preciso para viver, senti-me morrer sem o saber, senti as mãos daquela anestesista mostrar-me o meu ventre, e por fim, Meu Deus, este ser que me acolhe e transborda.
Que loucura tão sana que toma conta de mim, e eu luto como sempre, fora de tempo, com forças que desconheço, e venço e nem sei se mereço, mas estou tão cheia de mim...


Escrevi este texto algures esta semana.....



Qualquer caminho leva a toda a parte
Qualquer caminho
Em qualquer ponto seu em dois se parte
E um leva a onde indica a estrada
Outro é sozinho.
[...]
Fernando Pessoa 


Obrigada Marta!

07 fevereiro 2011

Nunca senti este descompasso tão forte, nunca me senti assim, tão em mim e simultaneamente indefesa, sem abrigo e acolhida por uma luz tão cheia. 
O meu coração bate depressa, as ideias sucedem-se sem razão, as horas, as horas, não é medo, é um anseio, não é palavra, é emoção, é um carinho ou abraço que outrora era tudo e agora já não chega, se estou cheia do que vivo neste instante que sendo tempo, tarda.
É Fevereiro, madrugada, os sons e as vozes acalentam na distancia, os que amo estão cá dentro e esta vida que  em mim, é um amanhecer sonhado, é tão mais que qualquer palavra e, eu fecho os olhos e o passado passa por mim, e o agora, o que tenho, é apenas uma passada, um compasso pequeno desta névoa iluminada.
Esqueci-me como se reza, esqueci-me de sonhar alto, mas creio como nunca, creio agora não sabendo, eu que sempre quis deter nas mãos o meu próprio caminho.
Nunca me senti assim, invadida de uma maré tão mais cheia que apenas de mim

29 janeiro 2011

Cheguei agora. A cidade parecia mais escura por sobre a ponte que a avista, distraida na conquista de uma memória que pretendo que não estranhe, as ruas, as avenidas, as luzes altaneiras e as esquinas distintas por cheiros e luminusidades. De rompante, a minha mente retorce-se, entre uma imagem que retenho e esta onda cinzenta e triste. Não quero, estou mais que triste, estou ofegante, estou numa fronteira desconhecida e tenho medo, porque não sei mais que de mim. Não quero por isso mesmo, porque conheço cada lado com que me visto. Que grandiosidade é esta? Que cegueira dos outros que nos assoberba como seres maiores? 
Durante anos, pensei estar atrás, dobrar curvas já pisadas e conhecidas antes de mim, ouvi falar de mim como se me vissem mais que eu, ouvi a arrogância do cimo de tribunas, iludi o mesmo lado da lua onde não gosto de me ver, mas existe, em mim, em todos, todos, vi-me na mesma inveja, na mesma dissimulação e fachada. Fiz o melhor e o pior que sabia, farei sempre, assim  como me obriguei a não gostar de cada noite escura que a minha face reflete. Sou mais inteligente que adjectivo, sou mais carente que esta cara fechada que não fala mas parece ser lida, sou mais descrente em cada palavra do que no silencio onde me escondo e tenho medo. 
Sou mais forte que penso, mais pequena e sim, invejo, invejo muito uma clareira plena que procuro muito mais longe que isto, invejo a capacidade de saber falar tão alto do bom e do mau, invejo o que sinto e não descrevo, o que amo e não tem reflexo, invejo a intenção de ser inteira sem esta consciência. Invejo a distancia da mentira e da ilusão, da má intenção e do julgamento. Admiro cada erro com que se cresce, humano, o amor que não é mais aqui ou ali, é por si só.
Esta cidade parece mais escura e mais ofuscante agora, grita-me o mais triste e o mais sublime, e eu não sei mais que o que sinto, e se falarem por mim, que me conheçam pelo menos. 

24 janeiro 2011

Olho para os recantos, para as flores que plantei, para cada caixinha colorida, fecho as portas devagar, o silencio deste canto reconforta-me e tantas vezes me atormentou. Falo comigo, das histórias que aqui ficam, das que imaginei e com as quais me vesti de crença. Reconheço que neste espaço, poucas foram as vezes que senti mais presença, a partilha e "desistência" de um controlo só de mim. Tenho em mim os cheiros, os ruidos lá fora que aprendi a ajustar no tempo. Já não me apetece falar de tempo, se o reparti num futuro mais cheio de mim, se nele cabem sonhos e silêncios, se levo comigo tudo o que em mim habita, a genuinidade que quase esqueci ser capaz de me ocupar. 
Já conheço o respirar que me alivia em cada memória, tornei-me cumplice da minha consciência, da clareza com que me avisto, se deixo quedar-me aqui sem nunca ter aprendido realmente como se faz. Não sei se choro de alegria, se de medo, se de credo ou simplesmente porque o meu corpo falou sempre mais alto que eu; sei que em mim há uma luz que brilha e é tão forte, tão forte, que me enche por inteiro.
Ontem, foi passado, sou agora, este momento feito do nada que é mais que tudo, rumo ao ponto de chegada sabendo ser mais partida, como soube que cada principio é antes um fim. Levo comigo apenas a parte mais bonita de mim.
Não sei do telefone, deve estar na mala, sei deste vento nascente que me agita, dos meus dedos que ganham vida nas palavras que me saem sem compasso nem reflexo, sei desta força que nunca senti. Ainda tenho medo de acreditar, já devia ter passado, não sei, e esta calma, esta nascente sentida, tão querida, tão pedida...
Levo comigo a parte mais bonita de mim.

15 janeiro 2011

A maré revolta tem o mesmo cheiro, queria que visses a mensagem que as gaivotas parecem deixar num bailado preciso e misterioso, difícil de decifrar, como um canto antigo que fala do que as nossas mentes já não sabem ouvir. Os contornos que outrora aguardavam uma história que não soube contar, parecem agora mais sólidos e sisudos e os grãos de areia amparam passadas vazias que deixo marcadas enquanto caminho em direcção ao mar. Revejo-me e atordoo-me de mãos frias.
Queria chorar antes de te contar em palavras como tem sido, queria rasgar-me por inteiro e despir-me de pensamentos, olho o mar e sei que o sentido não é a direito, por isso invento o sul no horizonte poente e sento-me no mesmo lugar.
Também o  meu amigo já não está aqui, habita em mim em cada momento do meu dia, sinto-lhe o cheiro e a alegria, sinto o carinho. Uma chuva forte acaricia-me a face quente e vejo-te no prolongamento do meu olhar cego e desmedido. Mais forte que o alcance das minhas mãos, mais certo que cada gesto, são os traços que trago comigo, é este tempo já longo que passa e em que mal me reconheço, é uma clareira soalheira no meio do mar, claridade ofertada que ousei saber sublimar.
Lembro-me da minha boca ter mais vida que as barreiras da minha mente, dos gestos significados em silencio de um mesmo olhar, de nem saber acreditar por isso, que me era devido ser por inteiro sem ser preciso explicar.
Os meus sonhos estão comigo, guardo-os no meu bolso infinito e, calada sei adiar revê-los um por um. Mascarada de palavras, falta-me forma de as moldar, perdi-me na ansia de a encontrar, mesmo assim, converso contigo todos os dias, no meu jeito sem jeito de me decifrar.
Esta chuva forte que alaga os pedaços de terra que a memória me oferta, analogia do horizonte estendido em mim, foi mais forte que o que sempre julguei poder, foi rasgado da noite que não vi nascer, desperto em mim como a maior lição, e agora, as paginas viram-se na ventania sem que as ouse deter.
Meu Deus, a ironia da vida beijou-me um sonho, como se em silencio, gritasse o meu poder, apartada da minha parte que aqui revi, sei de cor, envergonhada, cada certeza, cada palavra que não me cobre nem tapa, que não me protege nem me mostra. Estou aqui sentada agora, na sombra desta escarpa, tão perto de mim.
Trouxe o sol mas ele brinca lá longe, o mar revolto parece assustar o meu amigo recolhido, que tal como eu, sente falta, chamei-lhe "Badalito" porque ele balança como o vento quando o mimo, dá saltos de lado na minha direção, não me parece que por agradecido de um capitulo enfim feliz. Encontrei-o abandonado, faminto, aprendeu o bem e o mal que o "raciocinio" nos faz, levou pancada certamente e respeito-o por isso.
Renasci-me de vida, deitei fora os adornos que não me diziam, sinto-me forte como esta rocha, capaz de tudo quando já nem cria, perdi a voz das lágrimas e sorrisos preditos, aspirei o caminho que sigo, sinto-me  madrugada hoje.
Guardo-te na maré mais forte, sorrio por te inventar crescente para lá deste horizonte e habitante de mim.