08 abril 2016











De todas as palavras escolhi água,
porque lágrima, chuva, porque mar
porque saliva, bátega, nascente
porque rio, porque sede, porque fonte.
De todas as palavras escolhi dar.

De todas as palavras escolhi flor
porqariaue terra, papoila, cor, semente
porque rosa, recado, porque pele
porque pétala, pólen, porque vento.
De todas as palavras escolhi mel.
De todas as palavras escolhi voz
porque cantiga, riso, porque amor
porque partilha, boca, porque nós
porque segredo, água, mel e flor.
E porque poesia e porque adeus
de todas as palavras escolhi dor.

Rosa Lobato de F

03 fevereiro 2016



"A parte desconhecida da minha vida é a minha vida escrita. Morrerei sem conhecer essa parte desconhecida. Como foi escrito isto, porquê, como o escrevi, não sei, não sei como isto começou. Não se pode explicar. Donde vêm certos livros? A página está vazia e, de repente, já há trezentas páginas. Donde vem isto? É preciso deixar andar, quando se escreve, não devemos controlar-nos, é preciso deixar andar, porque não sabemos tudo de nós próprios. Não sabemos o que somos capazes de escrever.Conheci grandes escritores que nunca conseguiram falar disso - conheci Maurice Blanchot e Georges Bataille intimamente, conheci Genet, creio que menos. Eles nunca sabiam, nunca falavam disso. Penso que é errado, aliás. Há trinta anos, era uma espécie de pudor aprendido, em parte, na escola sartriana, não se podia falar daquilo que se escrevia, não era decente - e penso que em Les Parleuses é a primeira vez que alguém fala disso, pelo menos uma das primeiras vezes. É bom falar disso e, ao mesmo tempo, é muito perigoso dar a ler textos antes de estarem terminados.(...) Após o final de cada livro é o fim do mundo inteiro, é sempre assim, de cada vez. E depois tudo recomeça, como a vida.Quando se escreve, não se pode falar em vez de escrever. O que se passa quando se escreve, nunca se pode dizer. Eu consigo ler uma passagem, mas depressa fico assustada.Sou mais escritora do que vivente, que uma pessoa que vive. Naquilo que vivi, sou mais escritora do que alguém que vive. É assim que eu me vejo"

Marguerite Duras in Mundo Exterior


22 janeiro 2016

Pai




Um dia partirei, nada digo nem direi. 
Ao acaso sem destino e rumo incerto em noite de breu na lua ausente que não denuncie os meus passos e não sucumba no gesto.
O coração nas mãos bem firme para que não vacile e eu não me perca no olhar para alem da escuridão.
Garganta embargada e peito num aperto e já a dor de alma.Por montes ou vales ou pelos trilhos ainda nada do novo encontrei e em cada passo trôpego ou firme a lembrança chorando do que para trás deixei.Muito amor chorado ficou!Mas no caminho desconhecido talvez no dobrar da curva ao longe o sol desponte e surja o mar e para trás a montanha tão distante.À deriva um barco e eu, a maresia que me alimente e quem sabe se a leveza me reconforte.Ou naquela praia envolto na espuma reste exangue.

15 janeiro 2016

Manuel Aleixo
evoco-a no remanso secreto dos meus pensamentos e na saudade de um tremendo vazio. Alinhavo estas palavras sem guião, nesta sala cada ladrilho do chão e os pequenos ruidos são ela ainda, no quarto ao lado não desfeito, olho-o e mesmo na escuridão da noite quando me encaminho para o meu como que ainda convivemos no jeito carinhoso de despedida, um boa noite! Conversamos sob o conselho eterno da sabedoria que eu não fui capaz de saborear de todo, como se tivessem esgotado as respostas para as perguntas que inevitavelmente são feitas depois. Como se ela jamais atravessasse aquela ponte num adeus sem regresso.
Hoje, seis de Abril, comemoraríamos mais um aniversário! Nunca é de mais, é sempre tempo para a clarividência de não esquecermos quem devemos imortalizar enquanto vivermos. Numa outra evocação à memória do meu herói-pai, escrevi e agora repito: “que as minhas filhas saibam recordar-me um dia, quando fôr a minha vez de palmilhar trôpegamente a laje do meu irreparável adeus”.

Por ti, meu pai, homem da minha vida.


A Máquina do Mundo

E como eu palmilhasse vagamente
uma estrada de Minas, pedregosa,
e no fecho da tarde um sino rouco
se misturasse ao som de meus sapatos
que era pausado e seco; e aves pairassem
no céu de chumbo, e suas formas pretas
lentamente se fossem diluindo
na escuridão maior, vinda dos montes
e de meu próprio ser desenganado,
a máquina do mundo se entreabriu
para quem de a romper já se esquivava
e só de o ter pensado se carpia.
Abriu-se majestosa e circunspecta,
sem emitir um som que fosse impuro
nem um clarão maior que o tolerável
pelas pupilas gastas na inspeção
contínua e dolorosa do deserto,
e pela mente exausta de mentar
toda uma realidade que transcende
a própria imagem sua debuxada
no rosto do mistério, nos abismos.
Abriu-se em calma pura, e convidando
quantos sentidos e intuições restavam
a quem de os ter usado os já perdera
e nem desejaria recobrá-los,
se em vão e para sempre repetimos
os mesmos sem roteiro tristes périplos,
convidando-os a todos, em coorte,
a se aplicarem sobre o pasto inédito
da natureza mítica das coisas,
assim me disse, embora voz alguma
ou sopro ou eco o simples percussão
atestasse que alguém, sobre a montanha,
a outro alguém, noturno e miserável,
em colóquio se estava dirigindo:
“O que procuraste em ti ou fora de
teu ser restrito e nunca se mostrou,
mesmo afetando dar-se ou se rendendo,
e a cada instante mais se retraindo,
olha, repara, ausculta: essa riqueza
sobrante a toda pérola, essa ciência
sublime e formidável, mas hermética,
essa total explicação da vida,
esse nexo primeiro e singular,
que nem concebes mais, pois tão esquivo
se revelou ante a pesquisa ardente
em que te consumiste… vê, contempla,
abre teu peito para agasalhá-lo.”
As mais soberbas pontes e edifícios,
o que nas oficinas se elabora,
o que pensado foi e logo atinge
distância superior ao pensamento,
os recursos da terra dominados,
e as paixões e os impulsos e os tormentos
e tudo que define o ser terrestre
ou se prolonga até nos animais
e chega às plantas para se embeber
no sono rancoroso dos minérios,
dá volta ao mundo e torna a se engolfar
na estranha ordem geométrica de tudo,
e o absurdo original e seus enigmas,
suas verdades altas mais que tantos
monumentos erguidos à verdade;
e a memória dos deuses, e o solene
sentimento de morte, que floresce
no caule da existência mais gloriosa,
tudo se apresentou nesse relance
e me chamou para seu reino augusto,
afinal submetido à vista humana.
Mas, como eu relutasse em responder
a tal apelo assim maravilhoso,
pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio,
a esperança mais mínima — esse anelo
de ver desvanecida a treva espessa
que entre os raios do sol inda se filtra;
como defuntas crenças convocadas
presto e fremente não se produzissem
a de novo tingir a neutra face
que vou pelos caminhos demonstrando,
e como se outro ser, não mais aquele
habitante de mim há tantos anos,
passasse a comandar minha vontade
que, já de si volúvel, se cerrava
semelhante a essas flores reticentes
em si mesmas abertas e fechadas;
como se um dom tardio já não fora
apetecível, antes despiciendo,
baixei os olhos, incurioso, lasso,
desdenhando colher a coisa oferta
que se abria gratuita a meu engenho.
A treva mais estrita já pousara
sobre a estrada de Minas, pedregosa,
e a máquina do mundo, repelida,
se foi miudamente recompondo,
enquanto eu, avaliando o que perdera,
seguia vagaroso, de mão pensas.
Carlos Drummond de Andrade