31 dezembro 2009

Assim me deixo

Acordei cinzenta como o dia, os meus olhos demoraram a querer despertar. O primeiro pensamento levou-me há exactamente 365 dias. Saltava da cama, atrasada para viver, tinha um sorriso cá dentro que me despertava antes de acordar. Tinha a consciência da fronteira entre o meu horizonte e o meu dia, tinha uma estrada que explorava no meu tempo. Este sentimento de evasão, esta forma de meio ser, era como um compromisso fronteiro, era um dia por nascer, o meu passado trazido numa mala cheia. Era como se os dias aguardassem, serenos que eu tacteasse o meu caminho.
Há exactamente 365 dias, eu escrevia como bebeda, escrevia muito na minha mente, nas horas que construia em mim, vontade de mais ser. Vinha de um dia escuro que me fizera crescer tanto. Tinha sentidos, tinha momentos comigo que são os que agora lembro. Tinha um não na boca a cada invasão e investida, tinha as viagens na memória, tinha uma morada e uns olhos verdes que brilhavam por mim, de vez em quando.
Não tinha muitos amigos, mas de vez em quando, sentia a presença que deixara nas vidas de quem gosto, que eu gosto muito e não gosto nada, tinha as vontades que construira em conjunto com as pessoas que entraram em mim e ficaram para sempre.
Há exactamente um ano, havia um bando de passaros no muro do meu jardim que partiam quando eu acordava, e eu gostava de acreditar que esperavam por mim mais à frente, onde os meus olhos vislumbravam uma luz demasiadamente forte naquele momento que eu queria tanto.
Tinha palavras que me saiam com conteúdo e integridade, tinha o meu amigo que não me olhava admirado como agora. Tinha vida cá dentro, tudo em mim respirava, tinha o mar e a terra ao alcance das minhas mãos.
Tinha uma dor imensa também, mas eramos companheiras e já riamos em conjunto. Tinha  doença silenciada, tinha na memória, os filhos que não tive, os sorrisos que calei por vergonha, tinha a traição abraçada, tinha a convicção de cada lagrima, mais por mim, do que por outra coisa qualquer. Tinha o Alentejo nos meus olhos, as palavras de amigos que fui encontrando, sabia que caminhava para um porto que não queria ser de abrigo, queria um barco que me aguardasse e levasse.
Há exactamente um ano, sorria o dia inteiro e a minha mente fervilhava de ideias novas. A minha pele brilhava  e o meu cabelo era forte. Por onde quer que fosse, gostava das minhas roupas e do meu reflexo nas montras, sonhava ter uma mota que me levasse longe e revia-me nas faces mais simples que se assomavam nas portas ao entardecer. Tinha-me em todos os gestos que encenava, protagonista num palco real que ensaiava.
Tinha construção nas minhas mãos, sonhos, aspirava amar de verdade um dia, daquela forma que não conhecia, mas lera nos livros, cheia de céu e inferno, cheia de mar e de terra, sonhava ainda com um cavalo alado que entrasse em mim e me despertasse por inteiro.
Hoje acordei cinzenta, ignorei os passaros, vi pela primeira vez no meu corpo as marcas do meu desnorteio, vi nas palavras o permeio de anseios e derrotas. Vi o que já conheço e julgara distante, diferente. Deixei-me estar com coragem para me olhar de frente. Num ano, vi o meu céu e o meu inferno, as minhas mãos calaram-se na minha criação, porém construi em esforço mediano, sem deixar nenhum sorriso, sem saborear nada. Conheci os meus receios e o meu descrédito, naufraguei no porto sonhado, vi o meu cavalo alado preso e cego, como eu, vivi cada acto da minha negação, ensaiei peças de teatro sem vida, por medo e evasão. Reconheço-me nos sonhos e nos abraços sentidos que dei, no meu esbracejar molhado e salgado de não saber. Reconheço-me desperta como o fogo que me invade agora.
Hoje acordei cinzenta de culpa e vergonha. De mãos fechadas e olhar distante.
Acordei e pensei que o meu sonho era mais bonito, que o medo tem fundamento, por isso existe, procurei nas minhas gavetas empoeiradas a integridade e a coragem, tenho um pedido de desculpas para me dar logo à noite, desculpa ao meu mundo e ao meu vento, desculpa ao sonho que não soube abraçar, desculpa às marcas insanas e a cada maré vazia que a minha praia vê chegar. Desculpa por precisar ainda de umas mãos fortes que se esvaziam, de uma morada que me acolha, dos meus gestos de menina que sou mais que nunca, do meu tempo e da minha estrada, das marcas, das falhas que no fundo nada de mim guardam. Cá dentro há alma viva. Digo que não gosto de ninguém, mas gosto de tanta gente... Por dois ou três faria tanto. Digo que sou grande e junto pedaços de mim agora.
Acordei e lavei a minha cara com a ultima agua que tenho. Convicta e decidida. Porque há um ano, me havia a vida.
Tenho tanto para crescer e caminhar, tanto que devo e guardo. Sei ser unica e diferente, sei ser meu mar e terra, sei o que me move e há por dentro, alma que chora agora.
Do cimo de uma cadeira, onde quer que esteja, o meu desejo, que daqui a um ano, onde aqui me deixo, tenha um sorriso nos labios, a pele mais sedosa, o cheiro da terra no corpo, tenha alegria à minha volta, tenha o sol nos meus olhos e veleje num barco solto. Tenha um lugar com o meu nome à porta, um canteiro de flores que não esqueça de regar, o meu amigo ao meu lado, tenha amor nos meus gestos e uma migalha de mim em cada passo. Tenha musica que ecoe cá dentro e vontade de escrever e de ser.

1 comentário:

Breve Leonardo disse...

Não resisto a partilhar, Amiga Milhita, uma mensagem “urgente” que a Amiga Rejane me enviou; partilhá-la é o mínimo que posso fazer, possa ou não ser “prematura”, tamanha declaração:

“Depois de uma séria e cautelosa consideração, gostaria de notificar a renovação do nosso CONTRATO DE AMIZADE, para o ano de 2010 e seguintes…

“Nunca desvalorize ninguém…
Coloque cada pessoa perto do seu coração
Porque um dia você pode acordar
E perceber que perdeu um diamante
Enquanto estava muito ocupado a coleccionar pedras”

[Mande este abraço para todos os que você não quer perder em 2010, adverte-me a Amiga Rejane: é meu dever, minha tão grande obrigação…]

Um imenso abraço

Leonardo B.