19 abril 2009

Mishima ou A Visão do Vazio


Duas cabeças na carpete, sem dúvida acrílica, do escritório do general, colocadas uma ao lado da outra, como quilhas, quase roçando entre si.
Duas cabeças, bolas inertes, dois cérebros que o sangue já não irriga, dois ordenadores interrompidos na sua tarefa, que já não filtram nem descodificam o perpétuo fluxo das imagens, de impressões, estímulos e respostas que aos milhões nos atravessam todos os dias, formando no seu conjunto aquilo a que chamamos a vida do espírito e mesmo a dos sentidos e motivando e dirigindo os movimentos do resto do corpo.
Duas cabeças decapitadas, partindo para um mundo diferente onde vigoram outras leis e que, ao serem contempladas, produzem mais estupefacção do que horror. Os juízos de valor, morais, políticos, ou estéticos, ficam, na sua presença, momentaneamente suspensos. A noção que se impõe é mais desconcertante e simples: entre as miríades de coisas que existem e que existiram, estas duas cabeças existiram; existem. O que enche agora esses olhos que já não vêem, não é a bandeira desfraldada dos protestos políticos, nem nenhuma outra imagem intelectual ou carnal, nem sequer o vazio que Honda contemplara e que parece agora um conceito ou um símbolo, apesar de tudo demasiado humano.
Dois objectos, restos quase inorgânicos de estruturas destruídas e que depois de passarem pelo fogo serão apenas minerais e cinzas. Não são, sequer temas possíveis de meditação, pois faltam-nos os dados para podermos meditar sobre eles.
Dois destroços arrastados pelo Rio da Acção, que uma vaga imensa deixou por um instante a seco sobre o areal, antes de os voltar a levar consigo.




Marguerite Yourcenar in Mishima ou A Visão do Vazio

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