04 dezembro 2009

Tresmalhada.



O tempo trouxe-me a imagem de uma boneca de  fantoche manobrada por uma mão que não conheço. Diria que tem vida e que se move sozinha no espaço que ninguém vê.
Outrora desenhou-se de  laços enfeitados, apaziguada dos caminhos desvairados e sem norte que percorrera, desta vez deixava-se em mãos quase mestras que a movimentavam em gestos contidos e orquestrados. Foi assim que conheceu uma estrada serena e terrena, feita de noites e dias continuados, foi assim que aprendeu a partilhar o que dantes só lhe pertencia e a deixar que o seu domínio se enquadrasse num mundo de cordas e conceitos.
Os sentidos despertos, mais vivos que ela, semearam um olhar distante, umas mãos frias e uma voz embargada e cortada, uma face zangada e desconhecida. Ela colheu cada um com que se foi vestindo, camuflada de cada pedaço de si.
Fantoche em palco, fantoche de uma vida anunciada, ameaçada de calmaria e dias amenos de nada.
Cada laço, cada aposta, errada, trespassada de um conhecimento gerado, herdado, umas meias altas de lã e o timbre dos sinais de vida que a trespassavam em rasgos de vento de norte, tão fresco, tão quente.
É feita de cordas minha história, feita de amoras que colhi e de gritos silenciosos que soltei, moldada por conceitos ditados e inventados, por medo de me deixar ser.
Sinto-me envolta no mistério da verdade, desaguada numa margem desconhecida que me acolhe, olho ainda as aguas paradas e limpidas, olho os laços que vou lançando na água, um a um, em mãos molhadas da foz que me aguarda. Atribuo um nome antigo ao fantoche que se ri, enquanto repito mil vezes em silencio o que ninguem mais sabe, o que me molda, o que me assiste.
Ontem tive tanto frio, ontem sorri para mim, olhei-me de longe, ofereci-me antes do tempo, a coragem de me vestir, de me entender, de querer ser. Aqueci-me do meu querer.
Viajam em mim conhecimentos ordeiros, acerco-me da cada viagem que quero fazer, da rejeição de me deixar em mãos que me calam. Ouço sinais do tempo, ouço-me antes de mais nada. vejo o meu sorriso multiplicado no tempo que agarro.
Inspiro-me, transpiro-me, conquisto-me de terra feudal em que me escondi. Agradeço este silencio que me arrefece e me faz caminhar.
Há vento na serra, há nevoeiro tão claro, há vozes celestes que me guiam e um pastor de rebanhos tresmalhados que ri. Há o agora e o amanhã que eu não conheço mas que quero ver, cheio de vida, cheio de mim.

5 comentários:

Serafina disse...

Passei cá só para dizer, cara Milhita, que tenho seguido estas suas Memórias no Google Reader e que não só escreve muito bem como o conteúdo é muitíssimo bom. Simone de Beauvoir gostaria de ler.
Abraço,
Laura

Sophia disse...

Vou seguir :)

Luz disse...

Amiga da alma,
Que imagens de uma beleza indizível descreves aqui; que sentir, que ser e querer se invade de ti e, te inunda de vida, que bom sentir-te assim a sorrir e a querer ver a vida em ti :)

Abraço apertado de muita Luz

Manuel disse...

Ler estes poemas, em prosa, são o maior conforto que posso encontrar no fim de um dia de trabalho.

Adoro a forma como brinca com as palavras.

Obrigado pelos momentos mágicos.

marta marques disse...

A D O R O - T E