22 abril 2010

Vinha da escola. Pensava, ler Pessoa é partir de várias luas, transformar um corpo em pedaços mais reais, é respirar amargura transpirada por mais se ser, é loucura, deliciosa, é saber mais do que só, a figura, é a coerência das partes que só se intersectam na carne. Vinha da escola e dei por mim a cantar. Das conversas novas, dos cigarros na varanda, deste cansaço crescente, da desforra de outro medo. Desfocada, vou falando da sensação de me mover dali para fora, sem que os meus pés se movam. Uma sensação nova, estar não estando. Sentada, o branco foge-me e eu ouço mais olhando as luzes da lezíria por fora da janela, atenta, vagueio nos barcos que já não povoam o rio, adivinho o contorno da foz, a Atalaia do Guincho, que ouve a tempestade, quando se sente calmaria. Gosto de Direito por se falar de Umberto Eco, e transpor a lei a que os homens dão prazos e provas, cauções e vigências. Gosto de me sentar à porta desfraldada com Boris Vian e Duras, perder-me nas horas porque nada nos chama. Gosto do café que a senhora sabe que eu peço. Não é que aprenda, percorro-me no esforço de mais saber, na linha que se forma ao longe, no ser capaz de me perder nas madrugadas de probabilidades. Gosto de acreditar que amanhã, haverão barcos iluminados no rio, que se inventarão sempre musicas e que o tempo me chama, sem direcção.
Gosto mais ainda da companhia do meu telefone desligado, da culpa que me obriga calada, dos alicerces da vida, nos sorrisos pequeninos e dos abraços dos meus sobrinhos, das luzes presentes na minha vida, das memórias de um futuro nas mãos.
Vinha da escola e à minha frente, o céu rasgava-se em clarões majestosos, chovia tanto. E no caminho, há um campo semeado de novo, cheirava a terra molhada por fora da janela. Por qualquer motivo, parei o carro, sai e olhei em volta, a agua escorria na minha cara, e se olhasse na vertical, era como um acido antigo, de por na boca, uma imagem doce e fria, uns clarões tão grandes e tão serenos, e a chuva quente que já me lembrava gostar tanto.
A minha cara foi fervendo de uma bofetada demorada. Ferve ainda na mentira das estações. Legislo-me como num pêndulo, acerca dos pedaços do meu todo, do vazio que não via, ser mão cheia de tudo e dos elementos alternados. Regro-me de um querer renovado, do balançar dos sentidos, na direcção a que chamo, desassossego tão calmo. 

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