02 fevereiro 2009

Jogo de cartas

Vagueava pelas ruas dessa cidade onde vivo e nunca me revejo. Como sempre, a minha mente estava longe dos meus passos, distraida, sonhadora, com tempo para divagar sobre as questões mais insignificantes da existência humana.
Antes havia um jardim, nunca foi um jardim bonito, mas era um jardim, agora é apenas uma amalgama de arvores e terra com umas braçadas de erva quase morta de cansaço, mas naquele lugar, ainda hoje me entretenho a ver um quadro que sempre admirei, uns poucos velhotes a jogarem às cartas à sombra das arvores... Um deles sempre me fez lembrar o meu avô António, de boné por cima da testa em jeito de desconfiança e vivencia cheia.
Habituei-me a admirar aquele circulo de amigos, bem vestidos (para eles, o lenço na algibeira e as calças engomadas são fundamentais), atentos, cumplices, carregados de histórias partilhadas em tantas horas merecidas por uma vida a trabalhar. Habituei-me a beber a sua serena harmonia, e por vezes até, arriscava apurar o ouvido e ouvir as conversas... Não eram simples conversas de café e muito menos se equiparariam aqueles rugidos brejeiros da gentalha sem forma exaltados pela simples presença de uma mulher.
Neste dia, apeteceu-me parar e voltar a escutar.
Falavam do que todos falam, mas falavam deles..
Não liam numeros nem estatisticas idiotas de quem se apraz participar na loucura generalizada da hipocrisia presente, não diziam mal, não criticavam..
A crise era deles, estava neles..
Meu Deus, como desejei que aqueles engravatados, que se sentam todos os dias na representação de nós, tão conscientemente ignorantes da nossa existencia, saltassem desses puleiros e viessem aqui... simplesmente ouvir!
Aquele em que revejo o meu avô, falava baixinho, talvez envergonhado, da sua mulher que tinha acabado de vender umas terrinhas dos seus pais, aquelas onde havia brincado em criança, porque ambos desejavam ajudar uma filha em dificuldades em Lisboa... Advogada, note-se!
O outro falou qualquer coisa sobre este ano nao ter semeado por não valer a pena; e o ultimo mantinha- se em silencio, deixando tão claro o quanto a sua história seria mais triste..
Entre dois goles numa garrafa de liquido laranja, não era vinho, olhavam, amigos, uns para os outros, nada mais a dizer, a próxima cartada era do avô António!
Vim-me embora, com o meu saco de compras na mão, triste e simultaneamente cheia de um sentimento que só esta gente vivida e sofrida sabe transmitir...
Os outros não sabem de nada!

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