02 fevereiro 2010

Rosa



Quem me quiser há-de saber as conchas
a cantiga dos búzios e do mar.
Quem me quiser há-de saber as ondas
e a verde tentação de naufragar.
Quem me quiser há-de saber as fontes,

a laranjeira em flor, a cor do feno,
a saudade lilás que há nos poentes,
o cheiro de maçãs que há no inverno.

Quem me quiser há-de saber a chuva
que põe colares de pérolas nos ombros
há-de saber os beijos e as uvas
há-de saber as asas e os pombos.

Quem me quiser há-de saber os medos
que passam nos abismos infinitos
a nudez clamorosa dos meus dedos
o salmo penitente dos meus gritos.

Quem me quiser há-de saber a espuma
em que sou turbilhão, subitamente
- Ou então não saber coisa nenhuma
e embalar-me ao peito, simplesmente.

"Quem me quiser" - Rosa Lobato de Faria

Fiquei triste, mesmo triste, deixo uma homenagem de um poema que encontrei e de um texto que tinha guardado, há um tempo, um desenho emocional, uma orquestra de sentidos, que ela descreveu tão bem.

“Ele tirou a roupa com elegância e o seu corpo nu era bem a prova da existência do deus que criou o homem ao sétimo dia e descansou. Olhou-a sem a tocar e disse, tira a pulseira, os brincos, esse fio de ouro, quero-te nua, estás cheia de símbolos de classe social e agora não és nada disso, és um bicho soberbo, felino, em pleno cio. Ela obedeceu sem tirar os olhos dos seus olhos daquele dia, e ele procurou a boca dela pelo caminho das coxas, do ventre, dos seios, dos olhos, das orelhas, purificou-se na humidade dos lábios, disse palavras tontas, cântaro, barco à vela, fada, gueisha, camélia, tangerina, iniciou o caminho de volta enquanto as mãos ensaiavam voos de gaivota pela praia, pelos ombros, as costas, as nádegas, e os dedos festejavam e dizia palavras. E o corpo dela de tocaia suspenso entre o céu e a terra, oferecendo-se àquela língua sábia, enquanto o coração, ai dele, se afogava em marés ilimitadas. A sua branca, feminina garganta navegou em todos os cambiantes do murmúrio e do grito, e na hora vermelha, solta de todas as amarras, ouviu-se dizer palavras espantosas, morde-me, inunda-me, mata-me, quero que todos saibam que sou a tua coisa, a tua fêmea, ai.”

 “Os pássaros de seda”- Rosa Lobato Faria


2 comentários:

Miguel disse...

Adorava a escrita, a imaginação e a ousadia da Rosa Lobato Faria. Quando ouvimos falar que alguém morreu, reagimos quase sempre de formas diversas, consoante a intensidade emocional que essa pessoa tinha connosco. Com esta grande senhora das palavras custou-me a acreditar, mas como já li num outro blogue, Rosa Lobato Faria há-de continuar viva na memória de todos quantos privam de perto com as palavras.

Olga disse...

Tristeza, sim. Muita tristeza com que recebi a noticia, e todos os que tiveram o prazer de a ler e que ainda vão muito a tempo. Mas que a verdade seja dita, nunca vai morrer em nós, no povo português.