05 fevereiro 2010

Dano

Tanto que gostava de acreditar no alivio de expressar o que guardo dentro, um primeiro passo ensinado, ensaiado há tempo, de ónus de culpa danosa, de ferida aberta que sinto. Não sei se o sinto, aspiro a alivio desta ameaça de não esquecimento.
E eu, querendo, não esqueço. É como um tempo distado num segundo, que partiu devedor do sossego e da inocencia, foram gestos invasores do meu medo, da minha infância.
Da cara, não lembro, porque não foi essa que a noite guardou, lembro umas mãos rugosas, meias disformes, lembro uma calvicie pontiaguda, e uma voz forte e sábia, à altura de qualquer tema. Lembro um sofá castanho e um jogo oferecido da TAP em que se moviam peças até formar um avião.
Lembro antes do tempo, as noites animadas entre conversa e cartadas que só assistiamos até meio, por ser tarde, enubladas de mistério que me ultrapassa. Nunca vi nada, nos meus olhos de menina, via apenas viagens, aviões e histórias na primeira pessoa, que criavam na minha mente, sonhos, cores.
É negra agora a cor remanescente, pesada e criada em prol do instinto mais carnal que humano, mais humano que animal. No sofá castanho, no jogo da tap e das mãos que invadiam o meu mundo, do toque forçado e doloroso que abria as portas do que não sabia, nem queria.
Hoje não fumo por isso, nem choro, nem nunca me pesou, fiz desenhos num gabinete aquecido que parece que despiram, fiz tentativas de não me sentir nunca presa, um abraço apertado é laço que não intento, e o colo do meu pai foi algum tempo, porto de desabrigo.
E os bigodes? E os sorrisos babados? E a sede de corpos que me causa nojo na boca de quem mais não quer?
E eu mulher, menina, que me deito, que hoje penso que o silencio me fez bem, por não fazer deste tempo, nenhum dia. 

2 comentários:

Miguel disse...

Espero que um dia essa negra cor ganhe novos e garridos tons e que essa escrita que sempre prendeu a minha atenção continue a construir-se de emoções, mas de distintos sentimentos, de esperança, de sonhos e realizações, de vida. Tudo de bom.

Sonhadoremfulltime disse...

Amiga do desassossego,

Quanto me custou interpretar este teu belo texto.

Li, e voltei a ler e sempre que o voltei a fazer, o avaliava de forma diferente.

Tens esse dom que é escrever o que não escreves. Seres o que não és, não gostares do que és, mas adoras-te como mulher que és.

Onde já li isto?

Para um texto enigmático, um comentário insondável…



Beijo e Bom Fim-de-semana