15 julho 2009

Pai


De lagriminha no olho, revi o mail. Revi o homem que amo, o pai que me ensinou a sonhar.
Não resisto a postar o texto. Mais forte que uma tela.
É este o meu pai!
Hoje apetece-me escrever. Ou escrever-te.
Desafiaste a alma boémia e aventureira de viajante.
Ilustrei-a numa passagem breve pela serra do Pilar, bem quase na foz do rio que nasce em Espanha e que calcorreia terras lusas num incessante serpentear que nos inebria e entontece, trôpego sem saber para que margem cai. Com a serra do Pilar dizendo-lhe adeus, aí sim, corre luminoso e calmo.
Descreves-me o disfrutar de passeios calmos por essas águas límpidas, "embalado pelo som do comboio que sempre (nos) transporta para o país das lembranças", para o país nunca visitado e do qual, estranhamente, tantas saudades temos. Quer em Tua, ou no Pinhão, é depositado nas gares que te lembram desertos e te projectam para paragens longinquas de significados profundos, por onde reminiscencias te trazem á memória uma "boca e um coração cheios de chegadas, de esperas, de partidas, de encontros e de desencontros! Um bocado de vida, afinal.
Tambem este caminheiro por lá andou, mas ficou-lhe na alma um certo vazio de aventura, o que reclama o frenesim pela descoberta.
Em breve a lobriguei para alem da ultima estação do comboio, em Barca de Alva, ao virar para norte, no serpentear ao longo de uma fronteira que separa terras xistosas, de um lado portuguesas, do outro castelhanas. É o Douro internacional, o que brota nas terras frias de montanha e se escapa por entre arribas escarpadas onde nidificam o pombo, o abutre do Egipto, os grifos que se alimentam quase exclusivamente de animais mortos, e outras aves de rapina, tantas que surgem nos ceus, grandes, como nunca havia visto. Como a águia real ou a águia de Bonelli e o milhafre.
Mais difícil de ver será a cegonha preta, também chamada Ave Peixeira, uma autêntica jóia no reino das aves do Douro.
De quando em vez perco-me à conversa com pastores perdidos no tempo e na paisagem, os rebanhos vigiados, os pensamentos vagueando por entre poesia ou o indagar das coisas estranhas dos homens. Contam-me historias de sonho, falam-me de vidas, tambem vagueio por entre a realidade, o mito ou a lenda, e são eles que me indicam, lá no fundo das escarpas e nas rochas bordejando as águas, as inúmeras pinturas rupestres que por lá abundam.
Sigo ao longo dos cento e vinte e poucos quilómetros por terras transmontanas, ido de sul, pernoito na terra natal do poeta Guerra Junqueiro. Aconchegada por amendoeiras e oliveiras, Freixo de Espada à Cinta bem pode considerar-se a capital do manuelino, tantos os pormenores nas janelas e portas, nos cachorros junto dos peitoris, ou nos múltiplos brasões ostentando um freixo com a espada.
Terra de judeus, famosa pela sua torre octogonal cor de pergaminho que bem poderá contar a lenda que envolve o nome da terra e pelo poliptico de Grão Vasco existente na Igreja Matriz, que muitos dizem ser uma miniatura dos Jerónimos.
Uma casa que se refere como a Casa da Santa inquisição, mas que logo se contesta alegando-se ter sido uma Sinagoga.
Leio o poeta que tão bem descreveu os locais por onde calcorreou, por entre oliveiras e amendoeiras - "Cenários para um profeta ou para um salteador" - , e como que vislumbro tempos de antanho quando aquelas gentes conheceram o fabrico da seda.
Desafio a coragem para subir até ao Penedo Durão, promontório que irrompe a prumo sobre o rio. Impressiona só de o ver ao longe. Magnífico, apenas! Contenho-me nos adjectivos, enquanto as pernas ainda tremem. Uma vez nas alturas, naquela varanda celestial, como que sonho através da grandeza do vale e alargo o horizonte para além de terras de Espanha e aldeias do meu Portugal, percorrendo a vastidão de vinhas, pomares e os olivais que crescem nos baixios vizinhos de Lagoaça, Mazouco.
Deambulando nesta aventura gratificante para a alma, também o corpo requer fortalecer-se. Não dispensa os prazeres dos sabores e aromas que embriagam o espirito: o pão regional cozido em fornos de lenha acompanha o melhor presunto, salpicão ou chouriça com azeitonas. As trutas recheadas, o javali e a lebre estufada a rematar com deliciosas sobremesas fugitivas dos conventos... os doces de amêndoa e de ovos, o leite creme...Um pouco de tudo isto enquanto se repete a indispensável posta mirandesa!
Leio ainda o poeta que me tem guiado por entre os penhascos e desfiladeiros, as amendoeiras que regam os caminhos pedregosos - decerto que só contrabandistas andavam por estes atalhos de fim do mundo.
Em breve chego ao cenário que ele descreve como "tormentos de trovões de pedra": - a Calçada do Diabo. Só ele poderia guiá-los!
Quedo-me em fim de jornada, a alma prenhe de sensações díspares. Contemplo um pôr-de-sol roçando as rochas que o querem esfarrapar, deixo-me enlevar na quietude da tarde.
Não há palavras que descrevam o que vejo e sinto. Ficam-me as emoções na memória da magia e do mistério de uma região inesquecível e a saudade de lá voltar.

Manuel Aleixo (pai)

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