25 outubro 2009

Moldo-me de mãos de pedra

Queria arrancar de mim agora cada tempo em que me revesti de alegorias e preconceitos. Queria despedir-me da desilusão de mim mesma, região demarcada de um tempo que durou tanto. Queimei a minha memória com fumo prateado, falei para não me ouvir, segui instrumentos de tortura masoquista, fui impiedosa comigo, com os horizontes que criei em pequena. Entristece-me a desistência que prolonguei de mim. Entristece-me o tempo que passei orgulhosamente ausente, numa dormência suicida e carente.
Lembro-me de uma noite, o meu pai , sabendo-me companheira dos mesmos sonhos, me ter falado da luta que se anunciava, de olhar embargado, explicou-me a necessidade de poupança e sacrificio. Nessa noite, senti-me uma peça importante do meu mundo. Arregacei as mangas e cresci na convicção de orquestrar o meu futuro.
Via da minha janela, admirava os casais adolescentes, sorridentes que passeavam leves de vida. Não encontrava em mim o descomprometimento ilusório da desistência. Não conseguia. Sonhava ter um dia alguém do tamanho do meu horizonte, não tinha, não queria em expressão.
Da minha janela, os dias misturavam-se com as noites, visitavam-me em vigilia. Eu estudava, queria um sonho, queria corresponder. Questionava as vivencias e as teorias, escrevia muito, sentida que a vida passava  do lado de fora da minha janela, sem que nela me enquadrasse. Não tinha amigos, tinha livros, tinha a força do meu mundo.
Lembro-me das ferias que não tive, sentada ao lado de um estudante que me elevou o raciocínio matemático, que festejou comigo o valor na pauta, passagem ganha para o meu futuro. Lembro-me da minha convicção tão forte. Lembro-me agora.
O que aconteceu comigo? Que desmoronar de mim, que loucura, que vazio de repente se apoderou de mim...
Sinto-me agora latejante, sou simples, no meu mundo construido de selvas e planicies, de lutas e ausencias, de um acréscimo ébrio que me corta a respiração.
Sou mais simples, mais complicada, passei barreiras e reservas em nome de uma identidade perdida, somatorio de desistencias conscientes e um querer cada vez maior. Querer de mim, querer tanto.
Estou sentada numa cadeira, perto de uma janela onde os dias e as noites não deixaram de me visitar, mais reticentes, exigentes, reclamam que me veja.
Quem sou eu para não me corresponder? quem sou eu para soltar lágrimas reflexas de palavras que me ferem por prazer. Quem sou eu para assentir numa tela em que não me revejo?
Quero o meu sonho adiado, quero estudar, memorizar, quero ser capaz, mais que tudo. Quero o meu mundo que emana de dentro. Fundir-me nos dias e nas noites que me acompanham, pela fé crescente que se forma.
Não acrescento no presente que formo. Moldo-me de mãos de pedra, uma calçada que percorro. Minha, simples e saudosa.


2 comentários:

Sonhadoremfulltime disse...

Amiga, sei do que falas e o que sentes.
Eu também vagueio o meu corpo por entre o cimento da cidade; não lhe encontro identidade; não sei onde estou. Apenas vou. Saí há pouco… de onde? Mais um dia.
Que vivi desta vez? Não sei mas também não interessa.
Somente vejo os meus pés caminhando no piso escorregadio da minha vida que me deixou só.
Desço para a plataforma do destino. Estou sem forças e empurro as pernas para que o corpo não fique parado. Está frio neste lado de mim. Não sei como está o tempo desse lado, excepto que de vez em quando algumas gotas de chuva me vão molhando com algumas lágrimas.
Apenas sinto o peso deste esqueleto que envelheceu quando sem querer desistiu.
Hoje, se eu fosse dono de mim, deixava-me morrer…

Abraço amigo

marta marques disse...

pufftt...estou sem palavras!!! tanto pelo que escreveste Sandrinha...como do comentario do nosso amigo...!!!
depois de vos ler não tenho nada a dizer...foi tudo dito...

não consigo explicar-me por palavras...ora..vou pintando...inspirada por palavras que leio de seres como vocês...